PARTE 1 – Estranhos encontros...
Aracaju,
em algum momento de 1985.
Perdido. Talvez essa seja a melhor
definição para o estado ao qual me encontro. As dívidas se acumulam e eu não
consigo encontrar um modo de me libertar dessa condição ultrajante. Não suporto
mais tocar em praças, ruas e avenidas. Sinto meu talento sendo desperdiçado aos
sons de buzinas e apitos de guardas de trânsito, até encontro harmonia em toda
essa balburdia, no entanto, é impossível competir contra o pandemônio causado
por eles, no final das contas eu sou apenas mais um ruído no meio de tantos. Se
não fosse por Júlia jamais estaria aqui. Sinto-me culpado por tudo, porque sei
que no final das contas eu causei isso, mesmo assim não posso me entregar, o
menino e ela precisam de mim, tenho certeza que muito em breve encontrarei uma
solução.
Os
pensamentos envolviam Otelo como se ele fosse um mero fantoche do destino. A
gravidez precoce de Júlia, a rejeição dos pais, a oposição dos amigos, tudo se
somava contra aquela jovem casal que naquele momento se deparavam contra a
selva aracajuana. Aqui, as coisas podem parecer simples, apenas parecem. Todos
se conhecem e todos se sentem no direito de julgar, opinar, intervir. O casal
Otelo e Júlia se tornou referência de como as coisas podem dar errado na
mistura de diferentes classes sociais. Para os pais de Otelo e toda a sua
família, ele teria sido um trouxa que não tirou vantagem dos recursos de Júlia,
já para os entes queridos de Júlia, Otelo seria um espertalhão que tentara
conquistar esses recursos através da gravidez da jovem menina e ela, bem, ela
seria apenas mais uma trouxa que caíra nesse golpe. Enfim, no final das contas
para a nossa boa sociedade, sobravam os vilões para essa história e as vítimas
praticamente não existiam.
Otelo
se via diante de um dilema no qual o obrigava a se submeter a subempregos para
o bem de todos. Tocar em barzinhos, praças, ruas e quaisquer lugares que o
recebesse, tudo para ganhar uns trocados, tudo para garantir que as coisas
iriam dar certo. Era só uma fase pensara ele, mas era um momento que se
estendia por horas, dias, semanas, meses e simplesmente nada mudava. Assistir o
seu grande amor se humilhar em casas de família era martirizante, no entanto,
necessário. Opções? Pouquíssimas e soluções mais raras ainda. Dessa maneira,
ambos percebiam seus sonhos se esvair pelas mãos... Ela de futura grande
doutora a secretária do lar e ele de brilhante professor de música a tocador de
beira de esquina. Nada poderia mudar aquele triste destino. Poderia?
Notícia boa! Hoje recebi uma ligação
sobre a possibilidade de exercer a minha profissão, acredito que poderei sair
em breve dessa vida de madrugadas, a qual apenas a exerço porque preciso do
dinheiro, o único elemento que entorpece minha alma e me mantém de pé é o
álcool. Sei que às vezes exagero um pouco, mas para suportar tudo isso somente
iludindo a mente e com ela o meu espírito. Júlia está cada vez mais fria, mas
tenho certeza que se esse emprego vingar, eu conseguirei resolver as coisas.
O
telefonema não poderia ter vindo em melhor hora. A proposta de emprego seria
naquele momento o porto seguro que Otelo tanto precisaria para se livrar das
ilusões mundanas as quais ele tinha se permitido entregar. Não era fácil e em
nenhum momento ele buscara esse caminho, mas suportar noites em claro e o olhar
de crítica de seu grande amor era demais para ele, o álcool não era uma solução,
mas com certeza era uma fuga cada vez mais atrativa para os seus momentos de
desilusão e torpor, talvez se essa nova proposta de emprego vingasse, talvez as
coisas pudessem mudar, mas todas as possibilidades se resumiam a um mero
“talvez” e ele sabia que mesmo com a proposta não havia nada concreto.
Portanto, comemorar ainda era cedo, mas alimentar esperanças ainda que frágeis
e tardias já eram possíveis. Finalmente ele poderia exercer o que tanto sonhou.
Mesmo sem diploma, mesmo sem título, ele poderia iniciar sua carreira de
professor naquela pequena escola, que motivada por uma visão progressista
poderia em breve se tornar um grande núcleo de conhecimento, algo diferenciado
para a pequena e altiva cidade de Aracaju.
Fui hoje à escola, passaram-me uma
série de testes e acredito ter me saído bem. Quando toquei o violino pude
perceber que os outros professores e inclusive a bela e jovem diretora
exaltaram os olhos para mim. A remuneração é baixa, mas pelo menos é digna e
concede uma série de direitos que no futuro eu poderei usufruir em prol do
menino e da minha amada Júlia. Mesmo assim, sinto-a cada vez mais distante de
mim, fria e endurecida pelo duro trabalho, eu percebo que ela não é mais a
mesma e talvez esteja se transformando em algo que eu mal sei o que será. Mesmo
assim, eu a amo incondicionalmente, sempre amarei e daria minha vida para
fazê-la feliz.
Mesmo
contratado, Otelo preferira não contar nada a Júlia. Tinha convicção que ao
final do ano, economizando bastante e juntando todos os seus vencimentos,
poderia promover a entrada numa casinha pequena, mas ainda assim digna, para
que eles pudessem sair daquele quarto e sala e viver de fato como um casal.
Tudo estava planejado na cabeça de Otelo e ele se sentia mais confiante e mais
seguro do que estava fazendo. Assinou o contrato certo de que estava fazendo a
coisa certa, garantia de trabalho, salário mínimo e até mesmo um generoso
seguro de vida para Júlia e o seu menino que estava por vir, claro, ninguém
deseja morrer, ao mesmo tempo, ninguém conhece o dia de amanhã e justamente por
isso era necessário salvaguardar cada minuto daquela criança.
Otelo
previa que em poucos anos poderia dar a vida que Júlia sonhou, bastava ele se
consolidar na escola que crescia a nível exponencial e com ela o talento dele
que era percebido por muitos. De professor, já se tornara braço direito da
diretora que o consultava obrigatoriamente antes de tomar qualquer decisão.
Júlia mal imaginava o que acontecia, nos pensamentos dela, Otelo ainda tocava
em praças e como ele ainda ganhava pouco apesar da sua maiúscula importância na
estrutura da escola, o seu potencial era cada vez mais percebido, em alguns
casos até demais.
Dia corrido hoje, precisei
esquadrinhar a formação de algumas turmas para o ano que vem, além disso,
orientei a minha diretora a investir um pouco mais, ampliar o espaço e é claro
fornecer mais serviços. Apesar disso, ainda continuo ganhando menos do que
deveria, mas acredito que em breve, com crescimento do meu grau de importância
na escola, eu conquiste cada vez mais espaço e é claro cada vez mais melhorias
na minha remuneração. Não tenho nada do que reclamar dali, sei que em breve
ganharei um papel ainda maior do que eu já exerço. Mesmo assim, algo chamou
minha atenção hoje, foi a quarta vez que eu sou o último a sair da reunião e a
sensação que eu tenho é que ela me segura ao máximo, para que eu solucione,
problemas e ainda a sua vida conjugal. Ultimamente ela tem reclamado muito do
marido e de que se arrepende ter se casado tão jovem.
Sem
jeito, tímido e profundamente sem graça. Esse era Otelo após mais uma
insinuação de sua diretora. Aquilo já tinha se tornado recorrente e por mais
que ele evitasse ser o último a sair da sala dela, ela fazia de tudo para criar
essa situação. Otelo se esquivava, mas ela insistia e já dizia abertamente que
juntos eles poderiam construir um império, que ela largaria o marido para
iniciar um novo amor com ele. Perto de Otelo, aquela dura e fria diretora se
sentia uma menina e mesmo com toda a sua beleza e sedução, Otelo resistira a
ela, Júlia era o seu grande amor e somente a ela deveria se entregar. Mesmo
assim, por mais que ele dissesse não e que deixasse bem claro que a relação
entre eles era estritamente profissional, ela não aceitara e assim Otelo ia se
perdendo entre os assédios de sua chefe e a frieza do seu grande amor, que dura
e ríspida o deixavam ainda mais depressivo. O trabalho que ele tanto sonhara
estava dia a dia se tornando um inferno do qual ele não poderia se queixar,
pois sem ele, perderia tudo e com ele perderia Júlia, que não entendia o fato
dele sempre estar sem tempo.
Meu
Deus! Acho que tudo está perdido, ela está louca e me coloca em situações das
quais eu não sei mais me desvencilhar, nessa altura do campeonato não posso
mais contar a Júlia o que está acontecendo porque ela muito provavelmente se
sentirá traída por eu não ter dito sobre o meu trabalho. Por outro lado, Eva
deixou bem claro, ou eu largo Júlia para ficar com ela ou eu perderei tudo. Ela
não pode fazer isso comigo! Como eu sustentarei meu filho? Como eu irei manter
os sonhos de Júlia? Se eu contar a verdade perderei ela, se eu mentir terei que
traí-la! Não existe solução, não existe alternativa... Ou existe? Meu Deus!
Existe apenas um caminho...
Aracaju, num quarto escuro de 2012...
Eva?
Não é possível! Eva Sales conheceu meu pai?