Carpe Diem

E que venha a loucura

E que venha com toda a força

Força que me faça despencar das minhas próprias crenças

Crenças loucas


E que venha a fé

E que venha você

Renda-me!

Lute e enlouqueça também

Fuja da realidade

E se entregue às oportunidades...


Abandone a sua razão insana

E se afogue nesse mar de incertezas

Seja puramente profana

E que o nosso juiz seja a nossa vontade


E que o nosso controle e bom senso sejam passageiros

Viajantes de longa data

E que se percam na nossa odisséia

Na nossa aventura

Com nossa loucura

Buscando o porquê de ainda existir...

(Noturno)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Capítulo 9: Apenas amigos?


PARTE 1 – Estranhos encontros...

Aracaju, em algum momento de 1985.

            Perdido. Talvez essa seja a melhor definição para o estado ao qual me encontro. As dívidas se acumulam e eu não consigo encontrar um modo de me libertar dessa condição ultrajante. Não suporto mais tocar em praças, ruas e avenidas. Sinto meu talento sendo desperdiçado aos sons de buzinas e apitos de guardas de trânsito, até encontro harmonia em toda essa balburdia, no entanto, é impossível competir contra o pandemônio causado por eles, no final das contas eu sou apenas mais um ruído no meio de tantos. Se não fosse por Júlia jamais estaria aqui. Sinto-me culpado por tudo, porque sei que no final das contas eu causei isso, mesmo assim não posso me entregar, o menino e ela precisam de mim, tenho certeza que muito em breve encontrarei uma solução.

            Os pensamentos envolviam Otelo como se ele fosse um mero fantoche do destino. A gravidez precoce de Júlia, a rejeição dos pais, a oposição dos amigos, tudo se somava contra aquela jovem casal que naquele momento se deparavam contra a selva aracajuana. Aqui, as coisas podem parecer simples, apenas parecem. Todos se conhecem e todos se sentem no direito de julgar, opinar, intervir. O casal Otelo e Júlia se tornou referência de como as coisas podem dar errado na mistura de diferentes classes sociais. Para os pais de Otelo e toda a sua família, ele teria sido um trouxa que não tirou vantagem dos recursos de Júlia, já para os entes queridos de Júlia, Otelo seria um espertalhão que tentara conquistar esses recursos através da gravidez da jovem menina e ela, bem, ela seria apenas mais uma trouxa que caíra nesse golpe. Enfim, no final das contas para a nossa boa sociedade, sobravam os vilões para essa história e as vítimas praticamente não existiam.
            Otelo se via diante de um dilema no qual o obrigava a se submeter a subempregos para o bem de todos. Tocar em barzinhos, praças, ruas e quaisquer lugares que o recebesse, tudo para ganhar uns trocados, tudo para garantir que as coisas iriam dar certo. Era só uma fase pensara ele, mas era um momento que se estendia por horas, dias, semanas, meses e simplesmente nada mudava. Assistir o seu grande amor se humilhar em casas de família era martirizante, no entanto, necessário. Opções? Pouquíssimas e soluções mais raras ainda. Dessa maneira, ambos percebiam seus sonhos se esvair pelas mãos... Ela de futura grande doutora a secretária do lar e ele de brilhante professor de música a tocador de beira de esquina. Nada poderia mudar aquele triste destino. Poderia?

            Notícia boa! Hoje recebi uma ligação sobre a possibilidade de exercer a minha profissão, acredito que poderei sair em breve dessa vida de madrugadas, a qual apenas a exerço porque preciso do dinheiro, o único elemento que entorpece minha alma e me mantém de pé é o álcool. Sei que às vezes exagero um pouco, mas para suportar tudo isso somente iludindo a mente e com ela o meu espírito. Júlia está cada vez mais fria, mas tenho certeza que se esse emprego vingar, eu conseguirei resolver as coisas.

            O telefonema não poderia ter vindo em melhor hora. A proposta de emprego seria naquele momento o porto seguro que Otelo tanto precisaria para se livrar das ilusões mundanas as quais ele tinha se permitido entregar. Não era fácil e em nenhum momento ele buscara esse caminho, mas suportar noites em claro e o olhar de crítica de seu grande amor era demais para ele, o álcool não era uma solução, mas com certeza era uma fuga cada vez mais atrativa para os seus momentos de desilusão e torpor, talvez se essa nova proposta de emprego vingasse, talvez as coisas pudessem mudar, mas todas as possibilidades se resumiam a um mero “talvez” e ele sabia que mesmo com a proposta não havia nada concreto. Portanto, comemorar ainda era cedo, mas alimentar esperanças ainda que frágeis e tardias já eram possíveis. Finalmente ele poderia exercer o que tanto sonhou. Mesmo sem diploma, mesmo sem título, ele poderia iniciar sua carreira de professor naquela pequena escola, que motivada por uma visão progressista poderia em breve se tornar um grande núcleo de conhecimento, algo diferenciado para a pequena e altiva cidade de Aracaju.

            Fui hoje à escola, passaram-me uma série de testes e acredito ter me saído bem. Quando toquei o violino pude perceber que os outros professores e inclusive a bela e jovem diretora exaltaram os olhos para mim. A remuneração é baixa, mas pelo menos é digna e concede uma série de direitos que no futuro eu poderei usufruir em prol do menino e da minha amada Júlia. Mesmo assim, sinto-a cada vez mais distante de mim, fria e endurecida pelo duro trabalho, eu percebo que ela não é mais a mesma e talvez esteja se transformando em algo que eu mal sei o que será. Mesmo assim, eu a amo incondicionalmente, sempre amarei e daria minha vida para fazê-la feliz.
            Mesmo contratado, Otelo preferira não contar nada a Júlia. Tinha convicção que ao final do ano, economizando bastante e juntando todos os seus vencimentos, poderia promover a entrada numa casinha pequena, mas ainda assim digna, para que eles pudessem sair daquele quarto e sala e viver de fato como um casal. Tudo estava planejado na cabeça de Otelo e ele se sentia mais confiante e mais seguro do que estava fazendo. Assinou o contrato certo de que estava fazendo a coisa certa, garantia de trabalho, salário mínimo e até mesmo um generoso seguro de vida para Júlia e o seu menino que estava por vir, claro, ninguém deseja morrer, ao mesmo tempo, ninguém conhece o dia de amanhã e justamente por isso era necessário salvaguardar cada minuto daquela criança.
            Otelo previa que em poucos anos poderia dar a vida que Júlia sonhou, bastava ele se consolidar na escola que crescia a nível exponencial e com ela o talento dele que era percebido por muitos. De professor, já se tornara braço direito da diretora que o consultava obrigatoriamente antes de tomar qualquer decisão. Júlia mal imaginava o que acontecia, nos pensamentos dela, Otelo ainda tocava em praças e como ele ainda ganhava pouco apesar da sua maiúscula importância na estrutura da escola, o seu potencial era cada vez mais percebido, em alguns casos até demais.

            Dia corrido hoje, precisei esquadrinhar a formação de algumas turmas para o ano que vem, além disso, orientei a minha diretora a investir um pouco mais, ampliar o espaço e é claro fornecer mais serviços. Apesar disso, ainda continuo ganhando menos do que deveria, mas acredito que em breve, com crescimento do meu grau de importância na escola, eu conquiste cada vez mais espaço e é claro cada vez mais melhorias na minha remuneração. Não tenho nada do que reclamar dali, sei que em breve ganharei um papel ainda maior do que eu já exerço. Mesmo assim, algo chamou minha atenção hoje, foi a quarta vez que eu sou o último a sair da reunião e a sensação que eu tenho é que ela me segura ao máximo, para que eu solucione, problemas e ainda a sua vida conjugal. Ultimamente ela tem reclamado muito do marido e de que se arrepende ter se casado tão jovem.

            Sem jeito, tímido e profundamente sem graça. Esse era Otelo após mais uma insinuação de sua diretora. Aquilo já tinha se tornado recorrente e por mais que ele evitasse ser o último a sair da sala dela, ela fazia de tudo para criar essa situação. Otelo se esquivava, mas ela insistia e já dizia abertamente que juntos eles poderiam construir um império, que ela largaria o marido para iniciar um novo amor com ele. Perto de Otelo, aquela dura e fria diretora se sentia uma menina e mesmo com toda a sua beleza e sedução, Otelo resistira a ela, Júlia era o seu grande amor e somente a ela deveria se entregar. Mesmo assim, por mais que ele dissesse não e que deixasse bem claro que a relação entre eles era estritamente profissional, ela não aceitara e assim Otelo ia se perdendo entre os assédios de sua chefe e a frieza do seu grande amor, que dura e ríspida o deixavam ainda mais depressivo. O trabalho que ele tanto sonhara estava dia a dia se tornando um inferno do qual ele não poderia se queixar, pois sem ele, perderia tudo e com ele perderia Júlia, que não entendia o fato dele sempre estar sem tempo.

            Meu Deus! Acho que tudo está perdido, ela está louca e me coloca em situações das quais eu não sei mais me desvencilhar, nessa altura do campeonato não posso mais contar a Júlia o que está acontecendo porque ela muito provavelmente se sentirá traída por eu não ter dito sobre o meu trabalho. Por outro lado, Eva deixou bem claro, ou eu largo Júlia para ficar com ela ou eu perderei tudo. Ela não pode fazer isso comigo! Como eu sustentarei meu filho? Como eu irei manter os sonhos de Júlia? Se eu contar a verdade perderei ela, se eu mentir terei que traí-la! Não existe solução, não existe alternativa... Ou existe? Meu Deus! Existe apenas um caminho...

Aracaju, num quarto escuro de 2012...

            Eva? Não é possível! Eva Sales conheceu meu pai?

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