Carpe Diem

E que venha a loucura

E que venha com toda a força

Força que me faça despencar das minhas próprias crenças

Crenças loucas


E que venha a fé

E que venha você

Renda-me!

Lute e enlouqueça também

Fuja da realidade

E se entregue às oportunidades...


Abandone a sua razão insana

E se afogue nesse mar de incertezas

Seja puramente profana

E que o nosso juiz seja a nossa vontade


E que o nosso controle e bom senso sejam passageiros

Viajantes de longa data

E que se percam na nossa odisséia

Na nossa aventura

Com nossa loucura

Buscando o porquê de ainda existir...

(Noturno)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Capítulo 9: Apenas amigos?


PARTE 1 – Estranhos encontros...

Aracaju, em algum momento de 1985.

            Perdido. Talvez essa seja a melhor definição para o estado ao qual me encontro. As dívidas se acumulam e eu não consigo encontrar um modo de me libertar dessa condição ultrajante. Não suporto mais tocar em praças, ruas e avenidas. Sinto meu talento sendo desperdiçado aos sons de buzinas e apitos de guardas de trânsito, até encontro harmonia em toda essa balburdia, no entanto, é impossível competir contra o pandemônio causado por eles, no final das contas eu sou apenas mais um ruído no meio de tantos. Se não fosse por Júlia jamais estaria aqui. Sinto-me culpado por tudo, porque sei que no final das contas eu causei isso, mesmo assim não posso me entregar, o menino e ela precisam de mim, tenho certeza que muito em breve encontrarei uma solução.

            Os pensamentos envolviam Otelo como se ele fosse um mero fantoche do destino. A gravidez precoce de Júlia, a rejeição dos pais, a oposição dos amigos, tudo se somava contra aquela jovem casal que naquele momento se deparavam contra a selva aracajuana. Aqui, as coisas podem parecer simples, apenas parecem. Todos se conhecem e todos se sentem no direito de julgar, opinar, intervir. O casal Otelo e Júlia se tornou referência de como as coisas podem dar errado na mistura de diferentes classes sociais. Para os pais de Otelo e toda a sua família, ele teria sido um trouxa que não tirou vantagem dos recursos de Júlia, já para os entes queridos de Júlia, Otelo seria um espertalhão que tentara conquistar esses recursos através da gravidez da jovem menina e ela, bem, ela seria apenas mais uma trouxa que caíra nesse golpe. Enfim, no final das contas para a nossa boa sociedade, sobravam os vilões para essa história e as vítimas praticamente não existiam.
            Otelo se via diante de um dilema no qual o obrigava a se submeter a subempregos para o bem de todos. Tocar em barzinhos, praças, ruas e quaisquer lugares que o recebesse, tudo para ganhar uns trocados, tudo para garantir que as coisas iriam dar certo. Era só uma fase pensara ele, mas era um momento que se estendia por horas, dias, semanas, meses e simplesmente nada mudava. Assistir o seu grande amor se humilhar em casas de família era martirizante, no entanto, necessário. Opções? Pouquíssimas e soluções mais raras ainda. Dessa maneira, ambos percebiam seus sonhos se esvair pelas mãos... Ela de futura grande doutora a secretária do lar e ele de brilhante professor de música a tocador de beira de esquina. Nada poderia mudar aquele triste destino. Poderia?

            Notícia boa! Hoje recebi uma ligação sobre a possibilidade de exercer a minha profissão, acredito que poderei sair em breve dessa vida de madrugadas, a qual apenas a exerço porque preciso do dinheiro, o único elemento que entorpece minha alma e me mantém de pé é o álcool. Sei que às vezes exagero um pouco, mas para suportar tudo isso somente iludindo a mente e com ela o meu espírito. Júlia está cada vez mais fria, mas tenho certeza que se esse emprego vingar, eu conseguirei resolver as coisas.

            O telefonema não poderia ter vindo em melhor hora. A proposta de emprego seria naquele momento o porto seguro que Otelo tanto precisaria para se livrar das ilusões mundanas as quais ele tinha se permitido entregar. Não era fácil e em nenhum momento ele buscara esse caminho, mas suportar noites em claro e o olhar de crítica de seu grande amor era demais para ele, o álcool não era uma solução, mas com certeza era uma fuga cada vez mais atrativa para os seus momentos de desilusão e torpor, talvez se essa nova proposta de emprego vingasse, talvez as coisas pudessem mudar, mas todas as possibilidades se resumiam a um mero “talvez” e ele sabia que mesmo com a proposta não havia nada concreto. Portanto, comemorar ainda era cedo, mas alimentar esperanças ainda que frágeis e tardias já eram possíveis. Finalmente ele poderia exercer o que tanto sonhou. Mesmo sem diploma, mesmo sem título, ele poderia iniciar sua carreira de professor naquela pequena escola, que motivada por uma visão progressista poderia em breve se tornar um grande núcleo de conhecimento, algo diferenciado para a pequena e altiva cidade de Aracaju.

            Fui hoje à escola, passaram-me uma série de testes e acredito ter me saído bem. Quando toquei o violino pude perceber que os outros professores e inclusive a bela e jovem diretora exaltaram os olhos para mim. A remuneração é baixa, mas pelo menos é digna e concede uma série de direitos que no futuro eu poderei usufruir em prol do menino e da minha amada Júlia. Mesmo assim, sinto-a cada vez mais distante de mim, fria e endurecida pelo duro trabalho, eu percebo que ela não é mais a mesma e talvez esteja se transformando em algo que eu mal sei o que será. Mesmo assim, eu a amo incondicionalmente, sempre amarei e daria minha vida para fazê-la feliz.
            Mesmo contratado, Otelo preferira não contar nada a Júlia. Tinha convicção que ao final do ano, economizando bastante e juntando todos os seus vencimentos, poderia promover a entrada numa casinha pequena, mas ainda assim digna, para que eles pudessem sair daquele quarto e sala e viver de fato como um casal. Tudo estava planejado na cabeça de Otelo e ele se sentia mais confiante e mais seguro do que estava fazendo. Assinou o contrato certo de que estava fazendo a coisa certa, garantia de trabalho, salário mínimo e até mesmo um generoso seguro de vida para Júlia e o seu menino que estava por vir, claro, ninguém deseja morrer, ao mesmo tempo, ninguém conhece o dia de amanhã e justamente por isso era necessário salvaguardar cada minuto daquela criança.
            Otelo previa que em poucos anos poderia dar a vida que Júlia sonhou, bastava ele se consolidar na escola que crescia a nível exponencial e com ela o talento dele que era percebido por muitos. De professor, já se tornara braço direito da diretora que o consultava obrigatoriamente antes de tomar qualquer decisão. Júlia mal imaginava o que acontecia, nos pensamentos dela, Otelo ainda tocava em praças e como ele ainda ganhava pouco apesar da sua maiúscula importância na estrutura da escola, o seu potencial era cada vez mais percebido, em alguns casos até demais.

            Dia corrido hoje, precisei esquadrinhar a formação de algumas turmas para o ano que vem, além disso, orientei a minha diretora a investir um pouco mais, ampliar o espaço e é claro fornecer mais serviços. Apesar disso, ainda continuo ganhando menos do que deveria, mas acredito que em breve, com crescimento do meu grau de importância na escola, eu conquiste cada vez mais espaço e é claro cada vez mais melhorias na minha remuneração. Não tenho nada do que reclamar dali, sei que em breve ganharei um papel ainda maior do que eu já exerço. Mesmo assim, algo chamou minha atenção hoje, foi a quarta vez que eu sou o último a sair da reunião e a sensação que eu tenho é que ela me segura ao máximo, para que eu solucione, problemas e ainda a sua vida conjugal. Ultimamente ela tem reclamado muito do marido e de que se arrepende ter se casado tão jovem.

            Sem jeito, tímido e profundamente sem graça. Esse era Otelo após mais uma insinuação de sua diretora. Aquilo já tinha se tornado recorrente e por mais que ele evitasse ser o último a sair da sala dela, ela fazia de tudo para criar essa situação. Otelo se esquivava, mas ela insistia e já dizia abertamente que juntos eles poderiam construir um império, que ela largaria o marido para iniciar um novo amor com ele. Perto de Otelo, aquela dura e fria diretora se sentia uma menina e mesmo com toda a sua beleza e sedução, Otelo resistira a ela, Júlia era o seu grande amor e somente a ela deveria se entregar. Mesmo assim, por mais que ele dissesse não e que deixasse bem claro que a relação entre eles era estritamente profissional, ela não aceitara e assim Otelo ia se perdendo entre os assédios de sua chefe e a frieza do seu grande amor, que dura e ríspida o deixavam ainda mais depressivo. O trabalho que ele tanto sonhara estava dia a dia se tornando um inferno do qual ele não poderia se queixar, pois sem ele, perderia tudo e com ele perderia Júlia, que não entendia o fato dele sempre estar sem tempo.

            Meu Deus! Acho que tudo está perdido, ela está louca e me coloca em situações das quais eu não sei mais me desvencilhar, nessa altura do campeonato não posso mais contar a Júlia o que está acontecendo porque ela muito provavelmente se sentirá traída por eu não ter dito sobre o meu trabalho. Por outro lado, Eva deixou bem claro, ou eu largo Júlia para ficar com ela ou eu perderei tudo. Ela não pode fazer isso comigo! Como eu sustentarei meu filho? Como eu irei manter os sonhos de Júlia? Se eu contar a verdade perderei ela, se eu mentir terei que traí-la! Não existe solução, não existe alternativa... Ou existe? Meu Deus! Existe apenas um caminho...

Aracaju, num quarto escuro de 2012...

            Eva? Não é possível! Eva Sales conheceu meu pai?

quinta-feira, 1 de novembro de 2012


PARTE 4: O diário

            E se tudo na sua vida perdesse o sentido? Se seus sonhos fossem apenas ilusões distantes, opacas e entristecidas pelo tempo? Se as cores de seus dias se resumissem a meros tons de cinza? Pois é, eu não sabia muito bem o que fazer. Sentia ainda um mal-estar devido a noite passada, que além de ter ido para casa tarde, não conseguira fechar os olhos, descansar. Minha cabeça estava pesada e eu arrastava meu corpo pelos corredores da escola de sala em sala como se apenas estivesse alternando sessões de tortura, perdia-me em meus próprios pensamentos e como uma tartaruga fechava-me ainda mais na armadura dos meus devaneios. O dia não seria tão cheio assim, eram apenas dez aulas e logo logo eu estaria em casa para descansar. No entanto, sabia que precisava ir logo à casa de Dona Júlia, pois minha querida mamãe solicitara os meus serviços braçais em sua pequena reforma. Sozinho, possivelmente eu não daria conta, justamente por isso convidar Miguel se apresentava para mim como uma opção óbvia, além disso, precisava conversar com ele sobre tudo que estava acontecendo. Tique taque, o tempo corria, as opções de escolha eram muitas, no entanto, as certezas eram cada vê mais escassas. O telefone toca...

            - Miguel???
            - Fala boiolinha! Quanto tempo! Esqueceu seu amor foi??
            - O mesmo fresco de sempre né?
            - É claro! Cheio de amor para te dar! (Risos)
            - Cara, precisarei da sua ajuda... Tá afim de fazer uma forcinha?
            - Como assim?
            - Dona Júlia solicita os meus serviços. Ela está querendo que eu ajeite o quarto da minha irmã, muito provavelmente não será apenas isso, enfim... Você entendeu.
            - Para beber ninguém me chama né boiola? Mas tudo bem. Quando é?
            - Amanhã pela manhã, às oito horas. De lá queria surfar um pouco... O que você acha?
            - Poxa, gostei! A gente sai de lá meio-dia e depois segue para praia. A noite rola até uma baladazinha, o que acha?
            - Cara, não vou garantir a balada porque trabalharei no domingo, mas a praia tá certa!
            - Tu é uma “Isaura” mesmo né? Quem diabos trabalha no domingo?
            - Eu?
            - É! Só você mesmo! Você trabalha demais cara!!! Isso vai acabar te matando!
            - Ihhh lá vem sermão... Ói, a gente se vê amanhã então?
            - Tá boiola! Mas vê se me ouve...
            - Miguelito, preciso ir, depois nos falamos e aí você me xinga o quanto quiser! Xerunda.
            - Calm...

            Desliguei. Não havia tempo para aquilo. Eu sei que ele tinha razão, mas afinal de contas o que diabos eu poderia fazer? O sistema era assim. Ele te consome, absorve todas as suas horas vagas de tal maneira que você passa a viver em função dele, tudo gira ao redor da Escola, de uma forma, que depois de certo tempo, ela passa a habitar você. Já cansei de acordar no meio da madrugada, preocupado se estava ou não na hora de ir trabalhar, de simplesmente não conseguir relaxar por ter que preparar aulas, apostilas, provas, simulados, aulas extras e tudo que o sistema exigia de mim. É meu amigo, a vida não era fácil, não era mesmo.

...

Sábado pela manhã

            Ir à casa de Dona Júlia era extremamente desconfortável para mim, não sabia como me portar, mal sabia como olhar nos olhos dela, era um misto de tristeza e dor por angústias e mágoas mal curadas de um passado recente. Feridas continuavam abertas entre nós e eu mal sabia que talvez elas nunca cicatrizassem. Ao menos Miguel iria comigo, o trabalho árduo e a boa conversa me distrairiam por algum momento, o suficiente para não pensar nos problemas cotidianos.
            Ao chegar, Miguel esperava-me na porta e rapidamente suspirou

            - Atrasado mais uma vez não é doutor Pietro?
            - Cara foi mal, dormi demais...
            - Claro né? Você nunca descansa... Passa horas a fio na madrugada, o que diabos você tanto busca? O que tanto te incomoda?
            - Ihhh vai começar é??? Vamos começar logo essa mudança porque ainda quero surfar hoje.
            - Isso... Vai sempre se esquivar da conversa não é? Tudo bem, você é que sabe!

            Em meus pensamentos eu sabia que Miguel estava certo, mas o que eu poderia responder? Não fazia ideia do que buscava, do que queria... A única certeza que tinha é que naquele momento existia algo que me incomodava: Alice. E essa agora somada ao poder de Dalila e a interferência da Escola, bem, não era uma combinação agradável.
            Passamos horas desmontando guarda-roupas e camas, o que era para ser uma mera mudança de móveis de um quarto para o outro se transformou num reforma na casa inteira. Dona Júlia sabia que não deixaríamos trabalho por fazer e justamente por isso, fez o que eu já esperava, tirou proveito. Mal almoçamos e na esperança vã de terminar o serviço logo para usufruirmos o melhor da praia voltamos ao trabalho, contudo, o trabalho não acabava. Sempre apareciam coisas novas, móveis novos. Quando eu menos percebi já estava ajeitando encanamento e mexendo na parte elétrica da casa.

            - Ei Pietro, que quarto é aquele?
            - Cara, não sei, vamos terminar isso logo porque eu quero ir à praia!
            - Man desiste disso vai! Já são quase 16horas. Mesmo se fôssemos agora encontraríamos apenas resto de macumba, traveco e maconheiro! Ou seja, tudo que você gosta!
            - Porra nenhuma, ainda teria os usuários de crack, presentes do nosso ilustre governo e de uma sociedade hipócrita que nega o que está diante de seus olhos. Uma sociedade podre e decadente movida por modismos consumistas propagandeados pelas nossas emissoras de Tv!
            - Ihhhh falou o intelectual! Está parecendo aqueles esquerdóides que você tanto ama na Universidade.
            - Esquece vai!
            - Calma bichinha! É só uma brincadeira. Mas me diga! O que tem naquele quarto?
            - Cara, não inventa mais trabalho vai! To perdendo meu único dia de folga nessa bosta de reforma que Dona Júlia inventou!
            - Não fala assim do meu amor!
            - Vai te fu... Vai Miguel!
            - Cara, já estamos na merda, pelo menos vamos fazer o serviço completo.
            - Man, não sei não! Dona Júlia nunca me deixou entrar nesse quarto, é melhor deixar isso aí!
            - To entrando!

            Miguel era assim, não havia protocolos ou obstáculos que o impedissem. Sempre com uma visão positiva das coisas, era o tipo do cara que sempre via a metade do copo cheio. Não sei o que seria de mim sem ele, era meu irmão. O irmão que nunca tive, o pai que nunca me abraçou e de que nunca Dona Júlia falou a respeito.

            - Cara! Que bagunça isso aqui ó?! Isso sem falar que a luz não tá funcionando direito. Sobe aí que eu vou desligar o disjuntor!
            - Desliga essa merda direito, não quero morrer grudado no assoalho de Dona Júlia.
            - Calma bichi...
            - Ahhhh

            A queda foi rápida. Mas isso não a tornou menos dolorosa, não havia levado em consideração que talvez a escada não suportasse o meu peso, ou simples fato dela estar em falso. De qualquer maneira, quando menos percebi, já estava no chão. O impacto foi tão grande que rachou o velho piso de madeira, espalhando os tacos daquele velho quarto como se fosse palitos de picolé.

            - Cara tu tá pesado viu? Você quebrou o chão! Risos
            - Para de gracinha e vem me ajudar!
            - Cara você quebrou o chão!!! Risos
            - Não quebrei não! Essa merda tem um fundo falso!
            - Ué? Como assim? Dona Júlia esconde segredos???
            - Quem sabe né? Talvez ela esconda sua identidade secreta de quando ela era integrante da SS nazista! Risos
            - Você é péssimo Pietro!
            - Você gosta dela porque ela não é a sua mãe! Se fosse você conheceria aquela mistura de Adolf Hitler e Pol Pot em forma de mulher! Stálin perto dela é bichinha!!!
            - Pietro, o que é isso? Realmente tem um fundo falso aqui.
            - Hã? Não mexe aí cara!
            - Calma! Ei!!! Tem livros aqui!
            - Como assim?
- Calma, não são livros, mais parecem diários...
            - Diários??
            - Sim, desde quando sua mãe escreve diários?
            - Desde nunca. Deixe-me olhar isso aí! Estão assinados por...
            - Por quem? Que mistério é esse fala logo.

            Pietro recuou. Sua pele estava pálida e parecia que ele acabara de ver um fantasma, não expressava nenhuma reação, muito menos palavras. Aquilo estava assustando Miguel, pois nunca vira seu amigo assim. Nunca tinha visto Pietro demonstrar o sentimento que ele mais repugnava: medo.

            - Pietro? O que foi?
            - Cara eu preciso ir!
            - Pera como assim? O que aconteceu? De quem são esses diários?
            - Não importa!
            - Claro que importa! Olha o seu estado! O que aconteceu?

            Mal terminara a pergunta e Pietro virou as costas e saiu do quarto como se fugisse de uma alma penada, ele parecia atordoado e mal sabia como se comportar diante daquilo. Miguel o seguira e tentou segurá-lo pelo braço, mas foi em vão. Debaixo do seu braço três diários cuja assinatura repousa no canto direito com um nome simples e ao mesmo tempo poético. Um nome forte que talvez carregasse um lado negro, um passado tristemente esquecido que agora retornara com toda força para reivindicar o seu espaço, o seu direito de se pronunciar, um nome que transportara uma história que fazia pela primeira vez Pietro esquecer a Escola, Alice ou Dalila, que o fizera deixar tudo para trás sem nem ao menos falar com o seu irmão, um nome, um simples nome. Uma assinatura de dor, uma cicatriz, que agora voltava a sangrar: Otelo...


sábado, 14 de julho de 2012

Continuação do capítulo 8


Parte 3: O acordo

            Sem palavras. Com certeza essa é a melhor expressão para explicar a minha situação nesse momento, se o meu temor sobre Dalila já era enorme, a aliança entre ela e Alice tornava a situação ainda mais grave. Enfim, não restava outra opção para mim, a única escolha era sentar e entender o que realmente estava acontecendo.

            - Sempre atrasado, não é mesmo Pietro? Por que demorou tanto?
            - Adoro sua ironia Dalila, ela consegue elevar ainda mais o seu carisma. Eu tive contratempos, e como você sabe, eu trabalho até tarde.
            - Eu sei garoto. De onde você conhece minha advogada? Pensei que ela fosse nova na cidade.
            - Não tão nova. Estudamos juntos no passado, retornei a pouco tempo e por coincidência acabamos nos encontrando depois de quantos anos mesmo Pietro?
            - Seis anos, três meses e dois dias. E eu não sou um garoto Dalila, eu apenas não posso atender todas as suas exigências.
            - Nossa que memória hein?! Você deve ter deixado lembranças fortes nesse rapaz. Sabe Alice, esse jeito impetuoso dele, torna-o tão atraente não é mesmo?
            - Acredito que deveríamos iniciar nossas tarefas senão sairemos daqui apenas amanhã...
            - Alice está certa. E eu acordo cedo amanhã. Diga-me Dalila, o que é tão urgente?
            - Como você bem sabe, estou muito interessada em abrir um curso de aprofundamento onde eu possa aprimorar alguns projetos e garantir uma maior segurança nesse mundo cão. Você sabe que nossa área é extremamente instável e a Escola faz de tudo para que nós continuemos eternamente submisso a ela, a ilustríssima diretora Eva Sales gosta disso, e uma das formas dela manter esse cabresto é limitando nossas oportunidades de emprego e crescimento profissional a escola dela. Outros tentaram sair, entrar em outras escolas menores, tentar se desvincular dessa servidão, mas Eva sempre encontrou um meio de quebrar isso, você sabe Pietro, você sabe com quem estamos lidando...

            As palavras de Dalila não foram tão surpreendentes, mas causaram impacto. De fato, era impossível sair da Escola para outros estabelecimentos particulares sem sofrer retaliações e ainda mais num mercado de trabalho como o aracajuano.  Tudo aqui é baseado a partir do que se fala sobre você. Seu currículo, suas habilidades profissionais somente terão importância depois que bons comentários sobre você surgir e é nesse ponto que Eva domina a todos. Como a empresa dela é a maior, Eva acabou transformando sua escola num ponto de referência fundamental para a carreira de qualquer outro professor, ou seja, quando alguém é demitido da Escola, sua carreira estará fadada a um curto e penoso fim. Eva não poupará infâmias contra o indivíduo e ele será eternamente visto como aquele que não deu certo na Escola, e numa cidade como Aracaju, isso pesa mais que qualquer currículo.
            Contudo, o que mais me impressionava era essa percepção ter vindo justamente de Dalila, na minha cabeça ela era um dos alicerces da Escola, composta pela tríplice Eva, Dalila e Abel. Como eu imaginava, a noite seria bastante interessante...

            - Prossiga Dalila. Aonde você quer chegar?
            - Mesmo sabendo que você já sabe, eu explico com maiores detalhes Pietro. O objetivo dessa reunião é estabelecermos os parâmetros legais para montarmos uma sociedade entre eu, você e Abel.
            - Abel Sales? O filho da diretora?
            - Não me interrompa. Sim, Abel Sales. Ele, mais até do que você, será a nossa aliança com a Escola. Eva não nos atacará e ainda poderemos extrair as informações necessárias para o crescimento da nossa empresa. Planejamentos de revisões da Escola, número de alunos que precisarão de reforço para a recuperação de notas e é claro toda a logística de marketing e propaganda, aliando-se a Eva, teremos de brinde todos os aliados dela.
            - Certo, admiro o seu plano Dalila. Só não entendi em que parte eu sou importante. Dinheiro não tenho, e a única coisa que eu quero é sair desse mundinho.
            - Bem, você tem o talento e o carisma e isso para mim é o suficiente para te bancar no início dos negócios. Por isso, trouxe Alice, a qual pertence a um escritório de advogados de São Paulo que já me ajudou bastante no passado. Ela irá apresentar as condições do contrato que assinaremos hoje.
            - Assinaremos hoje? Como assim? Eu nem lhe dei minha resposta ainda!
            - Por isso mesmo que eu sei que é positiva. Pietro, eu te conheço e se fosse para você dizer um não, já o teria feito. Portanto, eu o deixarei a sós com Alice e ela te explicará todas as condições do contrato, agora preciso ir, Abel Sales me aguarda e como você já bem sabe, a vaidade dele precisa ser massageada.

            Não demorou muito para Dalila recolher suas coisas e sair da sala, que agora parecia ainda menor. Sentado, Pietro ainda tropeçava em seus pensamentos sem saber ao certo o que dizer a Alice, no fundo, ele sentia um misto de raiva, indignação, surpresa e medo. Tudo isso, somado a sua expectativa, tornavam seus pensamentos infantis e é claro, as suas ações também.

            - Advogada? E de Dalila? Qual é a sua Alice? Veio de tão longe para enfiar o último prego em meu caixão? Você precisa fazer tratamento hein?
            - Quem precisa de tratamento aqui é você! Ainda não parou com essa mania de achar que o mundo inteiro gira ao seu redor e tem um plano tenebroso contra você? Ahh eu tinha esquecido o quão você é brilhante, porque de certo, para tanta gente assim querer te destruir ou você é a última coca-cola do deserto ou apenas mais um estúpido que não enxerga além do seu nariz.
            - Ah tá! Eu sou estúpido? Acredito que estupidez deve ser algo que motiva alguém a sair de São Paulo apenas para se vingar de um ex-namorado, acho até que tem outra palavra para isso, ahhh lembrei: é BURRICE.
            - O especialista em vingancinhas aqui é você, bem nem tanto não é mesmo? A saber, pelo resultado de sua última vendeta. Agora para de ser ridículo! O escritório que eu trabalho presta serviços para a senhora Dalila há anos. E eu fui designada para auxiliá-la nesse novo empreendimento, mas vejo que ela escolheu pessimamente os seus associados, porque ao que me consta um deles é um playboyzinho que caiu de paraquedas nesse negócio e outro é um idiota completo, ISTO É, VOCÊ. Ah e só para constar, nós nunca fomos namorados, você me poupou disso.
            - Senhora Dalila hein? O que o dinheiro não faz...
            - Meu querido, eu não tenho a noite inteira, então fica calado e ouça com atenção os termos do contrato, até porque uma vez assinado, não haverá volta.
            - Quem não tem a noite inteira aqui sou eu, pega a bosta desse contrato e faz o que quiser com ele! Eu não vou ficar aqui trocando palavras com um tipo de pessoa como você.
            - Bem, a opção de ter uma explicação sobre o documento é sua, mas como sei que você assinará o contrato de qualquer jeito, mesmo porque já percebi desde que chegou que há um interesse mútuo nisso, irei deixá-lo em cima da mesa. Tenha uma boa noite. Ah só mais um detalhe, quando assinar, entregue-o ao mâitre, ele já foi instruído sobre isso. Tenha uma ótima noite.
            - Vai a merda...
            - Você não mudou nada... Tsc tsc, até parece que parou no tempo. Por acaso teve alguma decepção amorosa foi?

            Eu não consiguia me situar diante daquilo. Era demais para mim. Enfrentar Dalila já seria um desafio muito além das minhas expectativas, mas bater de frente com ela e Alice? Putz, logo Alice? Como uma menina tão meiga, tão doce se transformara naquilo? Seca! Dura...
Minhas pernas ainda tremiam mesmo após a partida dela, minutos se transformavam horas e eu já não me sentia entorpecido pela conversa que havia tido com ela, na verdade com as duas. O sistema a corrompeu? Era isso mesmo? Alice estava a serviço de Dalila por dinheiro? E se foi por tanto tempo como ela mesma mencionara, então ela sabia com quem estava lidando... E ainda assim a transformara em cliente? Por dinheiro? De fato, eu me sentia cada vez mais um Dom Quixote e não entendia ou pelo menos não aceitava o quão insignificante eu me tornara para Alice. Será mesmo que eu fora apenas isso na vida dela? Meus pensamentos amargavam e não conseguia sequer imaginar alguma estratégia, mal sabia o que elas queriam... Será que Dalila sabia do meu envolvimento com Alice no passado? Será que isso foi uma estratégia dela para me desmontar? Eu jamais conseguiria achar uma resposta naquele estado, aliás, apenas uma pessoa saberia isso e o nome dela é Miguel. Precisava ligar para ele, conversar, abrir o jogo, desde a noite no Casarão que me intriga essa aproximação dele com Alice, havia algo naquele cenário que eu não conseguira decifrar. Ainda assim, aquele maldito pedaço de papel se debruçava da mesa para mim, e no fundo ele sabia que eu precisaria engolir meu orgulho, minha dignidade, vender ainda que em pequenas parcelas minha alma para entrar no jogo, o qual eu mal sabia se conseguiria vencer, provavelmente não. Eu ficava diante dele e não conseguia enxergar nada, lia e relia, nada, absolutamente nada me chamava a atenção. Tudo estava contra mim e eu havia criado aquele monstro que se levantara friamente e fora embora, restava apenas assinar aquilo e ir também, afinal de contas já era madrugada e adivinhem? Eu acordaria cedo para trabalhar. Não havia muitas opções. Meu Deus... O que eu fiz? 

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Continuação do capítulo 8


Parte 2: Surpresa?

            A chuva continuava a cair, e misturada à noite parecia anunciar que ainda existiam surpresas por vir. Não poderia concentrar meus pensamentos em Alice, pois havia um problema muito maior para ser solucionado, mesmo assim, era muito difícil não pensar nela.
Enfrentar Dalila seria algo completamente novo para mim. Eu sempre admirei a perspicácia dela, uma mescla de beleza, inteligência e sedução, e acredite quando eu falo capacidade de sedução, eu me refiro a um poder incrível de conquistar tudo aquilo que ela deseja. Começou muito nova na Escola e soube como ninguém desvendar as manhas e segredos daquele lugar, bem articulada sempre alcançou os seus objetivos e rapidamente deixou de ser professora do ensino fundamental para se tornar membro da equipe da tão disputada turma de medicina. Dalila sabia jogar e de certa forma, quando eu entrei na Escola me espelhava nela para crescer. O mais irônico é que o destino agora nos pusera numa situação onde ambos tentariam usar um ao outro para alcançar os seus objetivos. Mestre e discípulo se enfrentariam muitos feridos seriam formados nessa batalha, talvez eu fosse um deles, talvez...
A capacidade de manipulação de Dalila era incrível. Ela era a única que faltava quando queria o trabalho, escolhia as turmas que lecionaria e tinha atendimento vip do nosso ilustríssimo e patético coordenador. De certa forma eu entendia como ela conseguia isso, mas nunca procurei me aproximar demais dela, como disse, Dalila era muito perigosa. O mais estranho era que eu não conseguia vê-la apenas como vilã, às vezes me divertia com a forma que ela ridicularizava o coordenador Maurício Nascimento sem que o imbecil sequer notasse isso, mas também percebia que ela tinha capacidade de fazer isso com qualquer um. É meu amigo, ninguém é totalmente bom ou totalmente mau, carregamos dentro de si, anjos e demônios prestes a agir. A sua influência sobre as decisões da diretoria impressionavam a todos, a forma como ela e Eva se tratavam era algo no mínimo estranho, talvez Eva fosse a única ali capaz de vencê-la e talvez fosse isso que Dalila temesse, daí buscar reforços, se é que eu pudesse ser visto assim, para enfrentar a onipotente diretora.
Será que Dalila percebera as minhas intenções? Será que ela desejaria usar a minha raiva ao seu favor? Ainda assim, eu tinha plena convicção de que não ofereceria perigo a Escola, por que então me escolher? Eram muitas perguntas e nenhuma resposta. Somente aquela reunião poderia acalmar os meus nervos.
Outra marca de Dalila bastante presente era o seu gosto por coisas extravagantes. Ela adorava requinte e luxo, acredite, a escolha pelo hall do Hotel Radisson não foi aleatória. Ela gostava daquilo, imprimia a si mesma uma condição que no fundo tentava diferenciá-la dos demais, a riqueza. Acontece que ela tinha basicamente a mesma origem que nós, então por que tanta extravagância? Talvez isso pudesse ser uma arma utilizada contra ela. Isso mesmo! Ela poderia ser derrotada pelo sua ambição. Restava a mim, manipulá-la a esse ponto e com isso, sair de uma vez por todas daquele mundo. Desafio fácil não é mesmo?
Estacionei o carro, o hotel está diante de mim, e ainda assim eu continuo paralisado pelas minhas dúvidas, sufocado pela minha mente e angústias, Alice não me sai da cabeça e Dalila está diante de mim, aguardando friamente a minha chegada. Ainda não consigo vê-la, mas posso senti-la bem próxima de mim. Aguardo alguns vários minutos, ensaio falas, planejo, penso, entretanto isso é completamente em vão. Lá estava eu, diante de uma das pessoas mais inteligentes que já conheci, prestes a enfrentá-la e ainda assim não sabia absolutamente nada, muito menos como agir. O tempo passa, o carro me sufoca e a expectativa criara em torno de mim um ar pueril, sentia-me como um animal preparando-se para o abate. O celular vibra e interrompe minha pseudo-concentração, é ela... Eu sei. Não há mais como evitar, preciso descer e acabar logo com isso.

- Por acaso está vindo de ré?
- Eu já cheguei. Onde você está?
- No mesmo lugar que nós marcamos a 1 hora atrás.

A irritação em sua voz demonstrava uma certa fraqueza. Dalila sempre teve tantos sob o seu controle, e eu era o único que até então jamais o estivera. Talvez isso acabasse hoje, talvez eu me tornasse mais um dos seus lacaios. Seria realmente esse o caminho correto? Muitas dúvidas, poucas certezas. Já estava me habituando a isso. Se ao menos eu soubesse quais eram as estratégias dela... Se eu pudesse descobrir os seus reais planos... Enfim, aquilo não seria possível, pelo menos não naquele momento. Era preciso enfrentá-la ou simplesmente me mostrar disponível para os seus objetivos.
Caminhei alguns passos e logo estava dentro do Hotel, toda aquela opulência um dia já me serviu como um banquete de ilusões, mas naquele momento, representava para mim apenas facetas de uma realidade repleta de contradições. Dalila gostava disso, sentia prazer em ter poder, aquela sensação para ela era talvez melhor do que sexo, e era possível perceber isso nos seus olhos. Cada ordem, cada subordinado que passasse pelas mãos dela conhecia exatamente o seu perfil, a mulher gostava de mandar e demonstrar isso através da riqueza era uma de suas formas favoritas. Estar ali, naquele ambiente repleto de empresários a fazia se sentir membro honorário da alta sociedade aracajuana, eu não conhecia bem a história dela, meu primeiro passo seria esse. Contudo, era preciso oferecer a minha alma para ela como barganha pela minha independência.

- Senhor?
- Pois não?
- A senhorita Dalila o aguarda na sala de reuniões. Queira-me acompanhar.

Era incrível. Ela preparara tudo, eu tinha absoluta certeza que ela criara aquele ambiente para me impressionar, ao certo Abel no meu lugar já estaria igual a um pequeno poodle servindo e agradando a sua senhora, eu podia até imaginar a cena. Não cairia nisso, não me deixaria iludir mais uma vez. Não sou mais o garoto que a Escola conseguiu seduzir.
Dirigi-me ao elevador panorâmico acompanhado pelos funcionários do hotel. Foram oferecidos drinks e uma série de mimos que eu não aceitei, queria estar bem lúcido diante dela. E não seriam bebidas e guloseimas que tirariam meu foco. Minha mente começava a se direcionar para o diálogo com ela e eu já quase me sentia preparado. Afinal de contas, o que ela poderia fazer? E mal desci do elevador e já me sentia o próprio Júlio César ao entrar em Roma.

- Queira-me seguir, senhor. A sala é logo ali.

Estou diante da porta. A hora é agora, não há mais como voltar atrás. Eu negociaria com ela, envolver-me-ia num outro investimento por três anos. Esse era o tempo que eu precisava para juntar a grana necessária e cair fora daquele mundo, se Dalila iria lucrar com isso, pouco me importa. Se a Escola iria perder com isso, que seja, desde que no final de tudo eu pudesse sair daquilo. Girei a maçaneta fria, minhas mãos não tremiam mais, contudo ainda estavam suando, respirei fundo e entrei...

- Que demora hein Pietro? Eu e minha advogada já estávamos quase indo embora!
- Advogada? Alice?

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Capítulo 8: Sobre estranhos e desconhecidos


Parte 1: Angústia         

Fria. Sua mensagem transmitia um ar formal, semelhante a uma convocação ou a uma exigência. Aquilo não era do feitio de Alice, pelo menos não da Alice que eu conhecera, possivelmente os anos devem ter transformado-a em outra pessoa, outra mulher. O que ela esperava de mim? Eu mal poderia imaginar, mas naquele momento pensei que teria sido melhor se a mensagem pertencesse a Dalila.
As palavras contidas na mensagem me conduziram para um estado de paralisia. Meus pensamentos, meu raciocínio, tudo suspirava o nome Alice... Esse nome era um fantasma que me atormentava desde adolescente, e eu sabia que nada havia ficado no lugar com o retorno dela a Aracaju, algo dentro de mim tinha desmoronado com o encontro no Casarão. O que não esperava era ela querer conversar comigo, meu Deus... O que ela poderia querer? Não estava preparado para isso, e tinha plena convicção que toda essa situação estava fora do meu controle, mal imaginava o que poderia dizer a ela ou o que ela pretendia dizer para mim.
Caminhei para o carro trocando os passos, confuso, não sabia se deveria retornar ou apagar a mensagem. A ansiedade de querer revê-la se misturava ao temor de ter que confrontar os meus próprios demônios. Era como se os erros do passado retornassem para cobrar a sua cota, e no fundo, eu sabia que teria que pagar essa conta uma hora ou outra. Arranquei o carro e mal dei boa noite as pessoas que estavam ao meu redor. Suava frio e a cada parada no sinal olhava para o celular desejando que nada daquilo estivesse ali, tudo bem, uma parte de mim queria, mas não daquela forma. Confrontar Alice, conversar com ela, foi tudo que eu sempre quis durante anos e agora que eu tinha essa oportunidade, simplesmente não sabia o que fazer. Nunca um celular fora um martírio tão grande, uma dúvida que me fazia se sentir um inexperiente menino. De fato, Alice não era mais Alice, ela era um anjo negro que com um belo sorriso viera cobrar os meus pecados, estava na hora de encarar essa realidade.
Mesmo assim, algo dentro de mim discordava de toda a minha suposição. Não sei bem ao certo, mas o temor que aquela mensagem me causara não era só motivado pelos problemas que tive com Alice no passado. É difícil explicar, mas algo estava estranho. Ela não era de mandar recados! Não dava para entender. E se assim o fosse, por que ela não me procurou antes? Poderia ter feito isso através de Miguel. Pronto! Ligar para Miguel e me informar sobre tudo era uma excelente ideia! Como não pensei nisso antes?
O telefone toca. Uma, duas, três e até quatro vezes... E como esperado, ele não atende. Será que estaria envolvido nisso? Será que esse era mais um plano para me aproximar de Alice? Ou poderia ser algo pior... Do jeito que ele tem a “boca grande” poderia ter soltado algo para ela, poderia ter contado sobre o meu isolamento, minha solidão após a sua partida. E se isso tivesse tocado ela? Se ela agora estivesse disposta a me ouvir, dar-nos uma segunda chance? Só de pensar isso eu já me enchia de esperanças. Não! Eu não poderia me permitir a sentir isso outra vez, entretanto, todos nós sabemos que isso é inevitável, não é?
Nem percebi e já estava estacionado no meu condomínio. Os últimos dias tem se tornado flashs na minha vida e a sensação que eu tinha era que tudo acontecia de uma maneira que eu me sentisse sonhando dentro de outro sonho. Alice, Dalila, trabalho, vida... Eram tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, e mal sabia como administrar tudo isso, digerir toda essa confusão e angústia sentimental. Nos quase 40 minutos que levei para chegar em casa só estive consciente no máximo por uns dois, totalmente mergulhado em minhas dúvidas não sabia ao certo que decisão tomar. Era engraçado, no mínimo estranho, mas sempre que eu precisava tomar uma decisão era algo que tinha que ser na “bucha”, no “vai ou racha” e azarado do jeito que era... As coisas na maioria das vezes acabavam rachando. É meu amigo, existem coisas que só acontecem comigo.
Mergulhei no chuveiro esperando que a água limpasse minha mente e transportasse com ela os meus medos, os meus anseios e as minhas angústias. Contudo, o celular continuava ali, com pontos piscando para demonstrar que existiam assuntos não resolvidos, dúvidas não esclarecidas. Tentei não olhar, tentei esquecer, mas era impossível, pareciam marretas ribombando em meus pensamentos. Tentei comer e até dormir, mas nada e ainda eram 8 da noite. Liguei a televisão e passeei pelos canais, para o meu desespero não encontrei nada, caminhei pelo quarto, pela sala e como era de se esperar o apartamento ficou ainda menor, a sensação de sufoco voltara e meu corpo já começara a transpirar. Peguei o celular e resolvi acabar com essa “porra” de uma vez. Mas antes de apertar a primeira tecla joguei-o no chão... O que eu iria dizer a ela? O que iria falar?
            Não aceitava ter tanto medo assim. Por que estava me sentido daquela maneira? Por que tanto medo? Peguei o celular novamente, disquei os números, cada tecla soava para mim como um caminho sem volta, restava apenas o último ato, uma última tecla. Desliguei mais uma vez. A indecisão circundava a minha mente e esse ir e vir, ligar ou não ligar me deixava alucinado. Tentei beber água, precisava me acalmar, puta que pariu! Era só uma ligação e eu estava daquele jeito e imagine se estivesse diante dela. Mas não, eu precisava resolver aquilo, não podia aguardar mais, corri para o celular e disquei tudo de novo sem pestanejar, restava a última tecla, bastava aperta “send” e colocaria um fim naquilo. Meus dedos tremiam a cada milímetro de aproximação, era só um toque, bastava isso. Contudo, o celular dispara na minha mão, o número não era estranho, restava atender. Seria ela? Cansada de esperar, estaria dando o primeiro passo? Bem, só havia uma forma de descobrir isso!

            - Alice?
            - Pietro! Até quando pretende fugir de mim? E não, eu não sou Alice. Não reconhece mais a minha voz?
            - Desculpe-me, quem é?
            - Vejo que a nossa sociedade precisa amadurecer. Encontre-me as nove no hall do Hotel Radisson. Teremos uma reunião emergencial hoje.
           
            Dalila. Não sabia se esse nome indicava frustração ou temor, de um jeito ou de outro ela sempre vencia e como de certa forma eu já esperava, mais uma vez me via envolvido nos planos dela. O que fazer? Bem, não restavam muitas opções. Ao menos, eu adiaria o assunto Alice por algumas horas.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Continuação do Capítulo 7


Parte 3: A mensagem

            O sinal tocou e de qualquer maneira eu já me sentia incomodado de estar na sala dos professores, sentia-me constantemente vigiado. Subi os degraus com velocidade e parti para a aula, de certa forma, mergulhar em autores já falecidos me libertava do cotidiano, a aula me tornava livre e por mais que viesse a odiar estar na escola, lecionar era para mim um suprimento necessário para a vida. Na maioria das vezes, os alunos estavam muito mais preocupados com o show do final de semana do que abordagens culturais. Não os culpo. É da idade e eu também já fora assim um dia, contudo, dentro de mim acreditava que poderia despertar naqueles meninos uma educação para a libertação. Muitos ali mal sabiam o caminho árduo que estava por vir, outros tantos já tinham esses caminhos traçados pelos pais, mesmo assim, eu continuava a duvidar que eles estivessem satisfeitos com isso.
A verdade é que de certa forma, transformamos aqueles meninos em robôs dedicados a estudar, comer e na maioria dos casos, reclamar. Eu fizera parte daquele complô, mesmo me recusando a admitir isso, e talvez por isso buscasse agora nadar contra a maré, lutar contra o sistema ainda que isso significasse o meu fim. Eu iria perder, estava destinado a isso, ainda assim acreditava piamente que a minha queda não seria em vão. Ainda não sabia o que fazer nem muito menos o que fazer, mas já tinha certeza que o canal para tudo seria Dalila, aquela ideia ainda rondava os meus pensamentos. A dúvida maior então era: Eu seria capaz de manipular Dalila e Abel contra a escola? E o que eu pretendia fazer? Denunciar um sistema do qual eu mesmo fazia parte? Quanto mais eu buscava respostas, mais dúvidas se insurgiam contra mim.
            Naquela tarde Dalila meu cercou com o seu olhar, evitei estar próximo dela, mesmo sabendo que jamais conversaria comigo na escola. Ainda assim, aqueles olhos penetrantes me interrogavam sobre a minha decisão, olhar para ela seria denunciar as minhas intenções. Dalila era melhor do que eu, mais inteligente, mais perspicaz, extremamente objetiva, e eu simplesmente não sabia como lidar com isso. O que fazer? A priori, evitá-la completamente. Sabe como é né? Se não pode enfrentar o inimigo, fuja ao máximo dele!
            Fim da tarde, última aula, bastava terminar o assunto, fazer aquela revisãozinha básica e rumar para o meu apartamento, ou como Miguel diz, a “Fortaleza da Solidão”. De fato era, mas com o tempo, fui me habituando a isso. Durante a aula não pensava em outra coisa senão fugir de Dalila, para isso, era mais do que necessário desligar o celular. Copiei o assunto, expliquei e revisei constantemente, na maioria das vezes, o segredo estava na repetição e nas dicas dentro das questões, bastava isso e alguns termos teatrais para torná-lo uma estrela da licenciatura. Medíocre? É o que eu venho tentando dizer...
            A aula acaba e me dirijo para o mezanino com um único objetivo: ir embora o quanto antes. Contudo, uma aluna me pára com dúvidas longas e extremamente interessantes. Mal tinha notado aquela menina na sala, mas diante das perguntas dela percebi que não eram dúvidas simples e há muito tempo ela provocou algo que não sentia: Curiosidade. A chama intensa do conhecimento, toda a humanidade dependeu dela para prosseguir e sem isso, seríamos meros macacos de laboratório. Se o objetivo era ir embora rápido, bem, este fracassou. Contudo, depois de muito tempo, eu me senti necessário, não me importava mais se Dalila iria ligar, até porque dificilmente eu atenderia, a vida tem dessas coisas não é mesmo?
Quando pensamos que estamos fadados a uma rotina desprezível algo acontece e revoluciona a sua história e depois de quase uma hora tirando dúvidas e conversando sobre dezenas de autores e livros, eu queria mais, mesmo assim, não foi o meu telefone que interrompera aquela descoberta inusitada, no melhor do debate, ela precisou ir embora e de certo, era até melhor, pois professor e aluna, muito tempo em um mesmo espaço sempre dá o que falar. Despedimo-nos e prometemos novos debates e o que restou daquilo tudo foi o olhar dela, não entendi bem, mas acho que queria me dizer algo mais.
            Dirigi-me ao elevador e eu já tinha muitos problemas para resolver, um deles me espreitava em busca de respostas, a resposta. Enquanto aguardava a chegada do elevador, notei a chuva lá fora, adorava o som da água caindo no asfalto, aquele som me transmitia uma sensação de purificação, de transparência, era como se eu pudesse limpar minha alma de todas aquelas dúvidas que a cercavam. Os instantes que antecediam o elevador pareciam eternos e a tranquilidade que a chuva me transmitia ia se esvaindo no momento em que eu voltava a realidade. Pensava como a minha vida possuía, em diferentes etapas, marcos específicos. Dalila, Alice, Dona Júlia, Nina, todas elas mulheres que ocupavam a minha mente escravizando-a em preocupações e naquele instante, eu notara que tudo que havia realizado na minha vida estava de alguma forma relacionado a elas, mas o pior era constatar que há muito tempo já não era mais senhor de mim, e que talvez nunca o fora.
            As portas do elevador se abrem, ele está vazio, também pudera! Eu era um dos últimos a sair da escola, sempre mergulhado em dúvidas e tarefas burocráticas como preencher cadernetas, corrigir provas e aturar reuniões de emergência. Aliás, se existe algo que é banalizado no ambiente escolar é a palavra urgência. Tudo é realizado com enorme pressão como se todo o universo fosse cair sobre a sua cabeça se tal nota ou tal boletim ou tal apostila não saísse no prazo específico os próprios arcanjos do apocalipse desceriam dos céus para te cobrar, ouvi dizer certa vez que foram buscar o resultado de uma prova no quarto de hospital, onde o professor se recuperava de uma leve cirurgia.
Eu até entendo a importância de se respeitar prazos, mas a forma que esse respeito ou temor era adquirido apresentava-se para mim como algo completamente desnecessário. A sensação presente era que todos deveriam se sentir constantemente ameaçados e na minha visão aquilo era interessantemente estratégico, pois sob ameaça, ninguém questionaria os problemas internos da escola, ou seja, seus péssimos salários, o assédio moral, a incômoda relação entre alunos, pais e professores e, sobretudo, a sua estrutura pedagógica pautada numa segregação intelectual e simbólica, onde os alunos são iguais, mas uns eram mais iguais do que outros, principalmente se fossem fortes candidatos para o curso de medicina.
            Faltava pouco para chegar ao térreo, e eu já cansado queria apenas sair dali e me jogar na cama, esquecer tudo aquilo nem que fosse através do meu curto sono. É bem verdade, que uma mente intranquila não dorme direito e tranquilidade era uma coisa que não me visitava a muito tempo. Ao sair da escola me despeço de alguns alunos e funcionários e dirijo-me para o meu carro, noto que meu celular sinalizava uma mensagem de texto, imaginei logo que fosse Dalila, mas para o meu temor era algo muito pior, no mínimo inesperado:

            - “Quando puder entre em contato, precisamos conversar. Ass: Alice”.

Fim do capítulo 7. Aguardem, semana que vem teremos novidades!!!