Parte 2: Feira de vaidades
Após
um almoço extremamente indigesto, retornei para o trabalho. A escola não pára,
a máquina não pode parar. Todo o sistema circula em torno de aprovações,
principalmente se elas forem em cursos considerados de elite, não basta
educar... O objetivo não é esse, o foco da escola é Medicina. O nome por si só
carrega em torno de si um peso, eu diria um fardo. Os alunos são postos em
preparação ainda no ensino fundamental e são convencidos durante anos que a
melhor escolha da vida deles seria a formação médica. Assim, eles são mimados e
ao mesmo tempo cruelmente cobrados. Os mimos são acompanhados de horas e horas
de cobranças e estudos, horários são elaborados, provas específicas, até turmas
específicas são criadas para essas pobres almas que, na maioria das vezes não
sabem se quer onde estão sendo envolvidos.
Tudo
faz parte de um imenso sistema que envolve marketing, disputa por mercado e é
claro dinheiro. Quando aluno, o sistema já era assim e agora que eu participava
do dele percebia isso com muito mais precisão. Todo o sistema educacional fora
moldado para isso, é triste e possivelmente decadente, mas são as regras do
jogo e se você não participa, o jeito é se omitir e sair gradativamente do
mercado. Era o que eu tentava fazer, contudo, a omissão também é uma forma de
sujeição e eu já não sabia o que estava fazendo. Provavelmente era tão
manipulado quanto os meus alunos, apenas não entendia ainda qual era exatamente
o meu papel nesse teatro de ilusões.
Difícil
era perceber como com o passar do tempo as pessoas iam internalizando essas
características. Professores, alunos, pais, ninguém estava isento. Justamente
por isso que ninguém era totalmente culpado. A sociedade representada pelos
pais somente valorizavam as escolas que aprovavam mais em medicina, os
professores acreditavam que ser valorizado é estar na turma de medicina e para
os alunos, os mais prejudicados nisso tudo, professor bom é aquele que acerta
mais questões e que leciona na turma de medicina, o interessante é que alguns
alunos já se consideravam até diferentes pelo fato de estarem nessas turmas. O
mais engraçado é que a escola manipulava essa feira de vaidades, estabelecendo
valores diferenciados de pagamentos dos professores, formas de tratamento e até
mesmo homenagens em confraternizações, acreditem... Beirava ao patético. Isso
sem falar nas estratégias para adquirir boas notas no rank nacional de
qualidade escolar. O esquema era simples: a Escola sabia que se os alunos de
baixo rendimento participassem das avaliações de rankeamento do sistema
educacional prejudicaria a colocação dela no resultado do Governo. Resultados
ruins equivalem a péssimas matrículas no ano seguinte, para maquiar essa
realidade e garantir um bom marketing no principal outdoor da cidade, bastava
marcar uma prova de recuperação no mesmo dia das avaliações governamentais.
Assim, apenas os alunos de bom rendimento fariam as provas e dessa maneira a
imagem de que a Escola produziria um ensino de qualidade era construída...
Nos
dias que eu almoçava na casa de Dona Júlia ganhava como brinde dois
desprazeres. O primeiro era ter que vê-la, algo bastante detestável para mim, o
outro era chegar mais cedo na escola. Como de praxe esperava o início da minha
aula na sala dos professores e acreditem, ali era o ambiente mais perigoso
daquele lugar. Certa vez, ouvi dizer que a vida é uma selva, pois bem, se isso
for realmente verdade, eu era um lobo no meio de leões. Professores são seres
extremamente interessantes. Não entrarei no mérito de julgá-los pelas suas
ações, mas torná-las públicas é o suficiente para qualquer julgamento.
Dentre
todas as peças da escola, os professores são aqueles mais importantes e ao
mesmo tempo mais desprezados. Importantes porque são eles que determinam o
valor da escola e a sua importância em aprovações, entretanto, ao mesmo tempo
são postos em condições de mediocridade por tanto tempo que eles próprios se
tornam medíocres. A disputa é acirrada, todo professor e eu mesmo me incluía
nisso, precisava de certa quantidade de elogios dos alunos, aquilo garantiria a
sua permanência no emprego. Tudo bem, até aí é completamente compreensível
buscar esses elogios, mas manipulá-los? Usá-los contra os próprios colegas de
trabalho? E tudo isso por alguns reais a mais na hora aula???
Tudo
começava com a própria divisão dos conteúdos a serem lecionados. Os professores
mais próximos da coordenação conseguiam assuntos que seriam de maior apreço ou
preocupação do aluno, os mais distantes ficavam com os piores. Com o passar do
tempo a repulsa ao conteúdo se direcionava ao professor. Bem, isso era o de
menos, supervisores e coordenadores tentavam transmitir a classe professoral um
suposto feed-back que nada mais era do que terrorismo, “turma tal não está
gostando da sua aula”, “prova tal não se adéqua ao modelo da escola”, “existem
pais criticando o seu trabalho”. No fim, algumas críticas tinham até
fundamento, mas o quadro pintado era muito mais trágico do que parecia ser. O
objetivo disso? Deixar todos inseguros. Pessoas inseguras são alvos fáceis de
dominar e de se sujeitar a quaisquer intransigências. No final das contas,
todos saíam perdendo, menos a escola. A pressão era muito grande e fora criada
para ser assim.
De
outro lado, ainda que distantes e não menos responsáveis estavam os pais. A
vida agitada dessas pessoas praticamente as obrigou a deixar para escola todas
as obrigações sobre a criação dos seus filhos. Ausentes, tentavam acompanhar de
longe o amadurecimento das crianças, que ocorria de maneira extremamente
desordenada e na maioria dos casos, confusa. A falta de tempo era recompensada
por bens materiais que tornavam o entendimento de vida desses meninos em algo
extremamente superficial ou simplesmente comprável. É claro que alguns poucos
se sobressaíam a isso, mas era muito difícil, em alguns casos até a escola
estimulava esse comportamento. O filho de Dr. X jamais poderia ser contrariado
e caberia ao professor adequar sua aula aos desejos do garoto, mesmo porque se
existe algo que as pessoas entendem muito bem é educação, não é mesmo?
É bem verdade, que
alguns professores buscavam tirar proveito disso, aproximar-se do menino
significava aproximar-se dos mais abastados meios sociais. Tudo faz parte do jogo,
tudo é uma selva e nessa feira de vaidades, alunos se tornam clientes numa
ciranda sem fim, onde não há culpados e vilões, apenas, tristes vítimas.