Carpe Diem

E que venha a loucura

E que venha com toda a força

Força que me faça despencar das minhas próprias crenças

Crenças loucas


E que venha a fé

E que venha você

Renda-me!

Lute e enlouqueça também

Fuja da realidade

E se entregue às oportunidades...


Abandone a sua razão insana

E se afogue nesse mar de incertezas

Seja puramente profana

E que o nosso juiz seja a nossa vontade


E que o nosso controle e bom senso sejam passageiros

Viajantes de longa data

E que se percam na nossa odisséia

Na nossa aventura

Com nossa loucura

Buscando o porquê de ainda existir...

(Noturno)

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Continuação do capítulo 7


Parte 2: Feira de vaidades

            Após um almoço extremamente indigesto, retornei para o trabalho. A escola não pára, a máquina não pode parar. Todo o sistema circula em torno de aprovações, principalmente se elas forem em cursos considerados de elite, não basta educar... O objetivo não é esse, o foco da escola é Medicina. O nome por si só carrega em torno de si um peso, eu diria um fardo. Os alunos são postos em preparação ainda no ensino fundamental e são convencidos durante anos que a melhor escolha da vida deles seria a formação médica. Assim, eles são mimados e ao mesmo tempo cruelmente cobrados. Os mimos são acompanhados de horas e horas de cobranças e estudos, horários são elaborados, provas específicas, até turmas específicas são criadas para essas pobres almas que, na maioria das vezes não sabem se quer onde estão sendo envolvidos.
            Tudo faz parte de um imenso sistema que envolve marketing, disputa por mercado e é claro dinheiro. Quando aluno, o sistema já era assim e agora que eu participava do dele percebia isso com muito mais precisão. Todo o sistema educacional fora moldado para isso, é triste e possivelmente decadente, mas são as regras do jogo e se você não participa, o jeito é se omitir e sair gradativamente do mercado. Era o que eu tentava fazer, contudo, a omissão também é uma forma de sujeição e eu já não sabia o que estava fazendo. Provavelmente era tão manipulado quanto os meus alunos, apenas não entendia ainda qual era exatamente o meu papel nesse teatro de ilusões.
            Difícil era perceber como com o passar do tempo as pessoas iam internalizando essas características. Professores, alunos, pais, ninguém estava isento. Justamente por isso que ninguém era totalmente culpado. A sociedade representada pelos pais somente valorizavam as escolas que aprovavam mais em medicina, os professores acreditavam que ser valorizado é estar na turma de medicina e para os alunos, os mais prejudicados nisso tudo, professor bom é aquele que acerta mais questões e que leciona na turma de medicina, o interessante é que alguns alunos já se consideravam até diferentes pelo fato de estarem nessas turmas. O mais engraçado é que a escola manipulava essa feira de vaidades, estabelecendo valores diferenciados de pagamentos dos professores, formas de tratamento e até mesmo homenagens em confraternizações, acreditem... Beirava ao patético. Isso sem falar nas estratégias para adquirir boas notas no rank nacional de qualidade escolar. O esquema era simples: a Escola sabia que se os alunos de baixo rendimento participassem das avaliações de rankeamento do sistema educacional prejudicaria a colocação dela no resultado do Governo. Resultados ruins equivalem a péssimas matrículas no ano seguinte, para maquiar essa realidade e garantir um bom marketing no principal outdoor da cidade, bastava marcar uma prova de recuperação no mesmo dia das avaliações governamentais. Assim, apenas os alunos de bom rendimento fariam as provas e dessa maneira a imagem de que a Escola produziria um ensino de qualidade era construída...
            Nos dias que eu almoçava na casa de Dona Júlia ganhava como brinde dois desprazeres. O primeiro era ter que vê-la, algo bastante detestável para mim, o outro era chegar mais cedo na escola. Como de praxe esperava o início da minha aula na sala dos professores e acreditem, ali era o ambiente mais perigoso daquele lugar. Certa vez, ouvi dizer que a vida é uma selva, pois bem, se isso for realmente verdade, eu era um lobo no meio de leões. Professores são seres extremamente interessantes. Não entrarei no mérito de julgá-los pelas suas ações, mas torná-las públicas é o suficiente para qualquer julgamento.
            Dentre todas as peças da escola, os professores são aqueles mais importantes e ao mesmo tempo mais desprezados. Importantes porque são eles que determinam o valor da escola e a sua importância em aprovações, entretanto, ao mesmo tempo são postos em condições de mediocridade por tanto tempo que eles próprios se tornam medíocres. A disputa é acirrada, todo professor e eu mesmo me incluía nisso, precisava de certa quantidade de elogios dos alunos, aquilo garantiria a sua permanência no emprego. Tudo bem, até aí é completamente compreensível buscar esses elogios, mas manipulá-los? Usá-los contra os próprios colegas de trabalho? E tudo isso por alguns reais a mais na hora aula???
            Tudo começava com a própria divisão dos conteúdos a serem lecionados. Os professores mais próximos da coordenação conseguiam assuntos que seriam de maior apreço ou preocupação do aluno, os mais distantes ficavam com os piores. Com o passar do tempo a repulsa ao conteúdo se direcionava ao professor. Bem, isso era o de menos, supervisores e coordenadores tentavam transmitir a classe professoral um suposto feed-back que nada mais era do que terrorismo, “turma tal não está gostando da sua aula”, “prova tal não se adéqua ao modelo da escola”, “existem pais criticando o seu trabalho”. No fim, algumas críticas tinham até fundamento, mas o quadro pintado era muito mais trágico do que parecia ser. O objetivo disso? Deixar todos inseguros. Pessoas inseguras são alvos fáceis de dominar e de se sujeitar a quaisquer intransigências. No final das contas, todos saíam perdendo, menos a escola. A pressão era muito grande e fora criada para ser assim.
            De outro lado, ainda que distantes e não menos responsáveis estavam os pais. A vida agitada dessas pessoas praticamente as obrigou a deixar para escola todas as obrigações sobre a criação dos seus filhos. Ausentes, tentavam acompanhar de longe o amadurecimento das crianças, que ocorria de maneira extremamente desordenada e na maioria dos casos, confusa. A falta de tempo era recompensada por bens materiais que tornavam o entendimento de vida desses meninos em algo extremamente superficial ou simplesmente comprável. É claro que alguns poucos se sobressaíam a isso, mas era muito difícil, em alguns casos até a escola estimulava esse comportamento. O filho de Dr. X jamais poderia ser contrariado e caberia ao professor adequar sua aula aos desejos do garoto, mesmo porque se existe algo que as pessoas entendem muito bem é educação, não é mesmo?
É bem verdade, que alguns professores buscavam tirar proveito disso, aproximar-se do menino significava aproximar-se dos mais abastados meios sociais. Tudo faz parte do jogo, tudo é uma selva e nessa feira de vaidades, alunos se tornam clientes numa ciranda sem fim, onde não há culpados e vilões, apenas, tristes vítimas.

terça-feira, 29 de maio de 2012

CAPÍTULO 7: Entre olhares, mensagens e encontros


Parte 1: O almoço

            Já era habitual, todos os dias, sobretudo os mais cansativos, Pietro depositava em seus diários suas angústias e lamentos, para ele, taciturno do jeito que era, consistia numa forma de desabafo, para ser mais exato, seria uma espécie de libertação. Às vezes, mergulhado em seu silêncio, o jovem Pietro navegava em seus pensamentos através de dúvidas e decepções, escrever para ele seria uma maneira de experimentar o torpor e alívio de se distanciar de seus problemas, um bálsamo para os seus momentos de aflição. Sempre buscando respostas, sempre a procura de algo que o definisse e possibilitasse abandonar de uma vez por todas aquele mundo.
            Mas dentre todos os problemas que Pietro enfrentava diariamente havia um que o incomodava de forma peculiar, encontrar com ela era algo detestável e agonizante, só de imaginar todas as ladainhas e lamúrias mescladas a um profundo sentimento de rejeição proferidas, faziam com que Pietro se sentisse a pior ou pelo menos a menor pessoa do mundo, mesmo assim, era algo inevitável.
Sendo dessa forma, que pelo menos fosse rápido, esse era sempre o pensamento dele, mas como o de costume, nunca o era e acabava se tornando um dia inteiro de pedidos e reclamações. No entanto, ainda que a visita a ela o incomodasse profundamente, a conversa com Dalila, pelo menos naquele momento ocupava todos os seus pensamentos. Seria realmente possível usar o sistema contra ele próprio? Montar um cursinho e fazer dele uma passagem rápida para sair daquele mundo, seria realmente possível? Pietro sabia que somente ganhando muito dinheiro poderia quitar suas dívidas e se dedicar aos estudos, diminuir a carga horária e retirar toneladas de preocupações de suas costas, mas será que essa era a maneira correta? De qualquer forma, Pietro sabia que para escapar do abismo precisava se esgueirar ao seu precipício ainda mais. Cair era um risco, mas não ousar uma fuga, mesmo que improvável, era ainda mais perigoso.

...

Próximo do horário de almoço

            Eu já havia lecionado praticamente toda a manhã , sabia que teria cerca de 40 minutos para almoçar e se possível tomar um banho rápido para voltar ao trabalho. Ir para casa nem pensar. Por mais que fosse horrível, a única opção viável seria ir para casa dela... O que para mim era um mal extremamente necessário. Não suportava o fato de ter que ir pra lá, mas com a grana extremamente contada e o tempo mais ainda... Bem, essa situação não chegava nem a ser uma escolha. Todo o protocolo de ligar, avisar, pedir e é claro ouvir, ouvir muitas indiretas e insinuações carregadas de rancor, ao mesmo tempo, o simples fato de ter que ir lá alimentava nela uma espécie de prazer, às vezes parecia que aquilo tornava viva a ideia de que eu ainda dependia dela, não é por uma questão de afeto ou disposição para ajudar, mas sim por uma necessidade patológica de mostrar poder, e aquilo definitivamente me incomodava, mas fazer o que né? Ninguém me prometeu vida fácil, só acho que não precisava ser tão difícil assim.

            - Boa tarde Senhora...
            - Você aqui...? Já sei! Veio almoçar não é mesmo?
            -Acertou! Já pode jogar na mega-sena viu?! Pretendo ser rápido, não irei incomodá-la...
- Trate de me respeitar seu moleque! Vem até aqui e acha que pode me dar piadinhas??? Eu sei que você só veio almoçar, é a única coisa que você faz! Trata minha casa como hospedaria, some por dias, não liga para mais ninguém... Por acaso acha que eu tenho obrigação de alimentar? Por que não usa o salário do seu empreguinho de que tanto se orgulha?

            Essa relação de cobrança para comigo era sempre muito interessante. Em toda a minha vida, ela nunca demonstrou o menor sinal de afeto por mim, eu nem consigo lembrar alguma palavra de apoio ou de carinho. Sempre fui extremamente cobrado, e ela não admitia falhas, devido a isso, a essa obsessão doentia por perfeição, transformou minha vida numa série de provas e avaliações. Sempre com futuros projetados onde todos opinavam e interferiam o único desautorizado a isso era eu. Bem, podemos dizer que minha criação foi um pouco severa. Nunca falou sobre meu pai, apenas que era um sonhador. Talvez ele tenha fugido por não suportá-la, afinal de contas quem a suportaria? A mãe dela, aquela que deveria ser minha avó, sempre me destratava na primeira oportunidade que tinha... Comparava-me sempre a algum outro neto ou qualquer vizinho que possuísse a mesma idade que eu. Nunca era vítima, sempre culpado e do alto dos meus 12 anos eu já acumulava surras épicas que marcavam minha pele e toda a vizinhança, afinal de contas eu era o menino pobre e mal criado, burro e desajeitado, voador e lerdo. Bom, os elogios eram os mais variados possíveis.
E assim eu fui crescendo, sem saber exatamente o que era afeto, ou palavras de carinho. Alguns traumas não saem da minha memória, certa vez, em um “dia das mães” já meio esquecido pelas mágoas e pelo tempo fui escolhido para fazer um poema para ela... Eu tinha apenas 7 anos, repito 7anos, não sei exatamente de onde veio a ideia, apenas sei que resolveram musicalizar o meu texto. Foi a única vez que ela demonstrou algo por mim, jamais esquecerei aquele olhar, transparecia amor, mas ao mesmo tempo muita tristeza, o que veio depois disso foi uma explosão de fúria, ela rasgou o meu poema e com ele os meus sonhos, ali com aquele simples gesto, eu soube pela primeira vez que havia algo de diferente em relação a mim, não sei exatamente o que, mas desisti de entender a cabeça dela. Vida que segue.

            - E para quem eu deveria ligar? Para sua amada mãe que te expulsou de casa grávida? Ou para a senhora que eu mal entrei e já está me cobrando... Imagina se eu ainda morasse aqui. Olha, eu não tenho muito tempo... Nina está bem?
            - Se você quisesse saber mais sobre sua irmã você ligaria para ela...
            - Dona Júlia, eu só vim almoçar...
            - Eu sou sua mãe.
            - A senhora nunca conquistou esse título.

            Fui até o quarto na esperança inútil de dar um beijo na minha irmã, pela minha felicidade ela não teve a mesma criação que eu tive, para ser exato, às vezes me sentia excluído daquele mundo. Minha irmã sempre fora tratada como uma princesa e de fato sempre mereceu isso, estudiosa, dedicada e muito meiga, certa vez ouvi dizer que ela lembrava a Dona Júlia quando nova. Acho muito difícil, não consigo imaginar sentimentos daquela mulher... Enfim, para a minha tristeza não a encontrei e também não poderia esperar por ela, deixei um bilhete, coisas que irmãos fazem um com outro. Almocei debaixo de algumas reclamações e cobranças, para ser sincero mal conseguia distinguir o que ela dizia.
Eram sempre tantas coisas, tantas críticas que eu simplesmente ignorava tudo ao meu redor, no fundo algo me dizia que era através disso que ela tentava chamar minha atenção. Provavelmente escolheu a forma errada, desprezo e estupidez nunca foram ingredientes para o amor e respeito. Dona Júlia nunca aceitou meu envolvimento com as Letras, o sonho dela para mim era a Medicina... Mal dá para descrever como era massacrante as cobranças dela, a título de exemplo, eu acho que fui o primeiro garoto do meu bairro a aprender a falar inglês e isso com 10 anos. E quando iniciei o ginásio, hoje chamado de ensino fundamental, começou de fato a minha via crucis, todo fim de mês era um terror, Dona Júlia não aceitava notas inferiores a 9 e a cada fracasso uma humilhação. Basta fechar os olhos que eu lembro das surras, dos gritos e berros, frases do tipo “Você me envergonha”, “Nunca será nada”, “Não te sustentarei para sempre”, “VAGABUNDO” e isso eu tinha 13 anos!!! Dá para acreditar? Quando entrei no ensino médio, eu me tornei algo que os meus poucos amigos chamavam de Zumbi, não saía de casa, não me envolvia com ninguém, era trancado em meus livros, diários e pensamentos.
Às vezes penso que estive numa prisão e somente após muito sacrifício conseguir sair dela. A decisão por outro curso foi o início da emancipação de Dona Júlia, que por não aceitar minha escolha, já não pagava minha escola e assim eu fui para o ensino público onde conheci meu grande amigo Miguel. É triste olhar para o passado e enxergar que a única lembrança que eu tenho da minha mãe é o sofrimento, aliás, mãe não, Dona Júlia.
Quando ela se envolveu com outros homens, eu fui “convidado” a assistir os seus amores e desamores, é difícil imaginar isso, contudo, não é de agora que acompanho os equívocos dela. E sabe como é né? Para cada decepção amorosa, meu calvário aumentava ainda mais. Não sei se foi sonho ou se é algo esquecido na minha memória, mas certa vez acho ter a ouvido dizer que eu sou a prova do fracasso dela, a cruz que meu pai teria deixado para puni-la, eu tinha apenas 4anos e já era culpado por todos os problemas do mundo.
Quando minha irmã veio ao mundo, a situação ficou menos pior, pois se antes era o alvo, passei a ser um desconhecido na minha própria casa, completamente ignorado, a ponto de ser servido pratos e alimentos diferenciados para cada filho. Nem preciso dizer que eu não comia “caviar”... Hoje percebo que ainda não me libertei, mas no fundo sinto que ela nunca me aceitou e por isso sair de casa pelos meios que tive foi a melhor opção, provavelmente a única.
 Fui para o trabalho, ainda faltava muito para o dia acabar. Antes de sair...

            - Pietro! Nesse sábado quero você aqui em casa.
            - Não obrigado, não curto safári.
            - Estou precisando ajeitar algumas coisas para a mudança.
            - Como assim mudança?
            - Não lhe devo explicações.
            - E eu não sou seu empregado.
            - Quero que você desmonte o quarto de Nina, ela não pode fazer isso sozinha. Esteja aqui às 7h.

            E assim, eu percebia o quanto aquele almoço iria me custar. Pois, de certa forma, quem iria desmontar a casa seria eu, Dona Júlia citou o nome de Nina, porque sabia que jamais negaria algo para minha irmã. Oportunista, possivelmente... Mas com certeza, muito esperta. Ela sempre acabava me envolvendo em algo que eu lutava para ficar distante, como disse, ela me queria por perto, afinal de contas qual senhor não deseja ter os seus subordinados à sua disposição?

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Continuação...


Parte 3: O Alicerce

Meses depois

            Angustiada. Talvez essa fosse a palavra mais adequada para caracterizar Júlia, grávida de 3 meses, logo ela não conseguiria mais esconder a sua condição para a sociedade e principalmente para os seus pais. Otelo, não tinha respostas, e imaturo do jeito que era, jamais saberia contornar aquela situação, o garoto ingênuo e carinhoso apresentava-se cada vez mais desesperado e infantil.
Otelo, em suas angústias buscou auxílio em seus pais, contudo, a única ajuda que recebeu foi um convite para se retirar de casa. Morava agora num quartinho e vivia daquilo que conseguia arrecadar com a sua música. Não demorou muito e ele largou a faculdade, dedicou-se a vida noturna, tocando em barzinhos, o que o levou a uma nova paixão, o alcoolismo. Perdido e desamparado, Otelo seguia rumos cada vez mais obscuros e Júlia, desconsolada, não sabia como reagir. Não era apenas uma questão de desamparo, ele realmente não aceitava ter chegado a esse ponto, estragara a vida dele, arruinara o futuro de Júlia que agora chorava copiosamente pelos cantos. Faltou a eles conselho, faltou carinho, no entanto, cobranças e dúvidas sobraram.
            Não demorou muito para que os pais dela descobrissem a gravidez e assim como o esperado a puseram para fora de casa. Grávida e sem opções, Júlia foi morar com Otelo, e muito em breve também abandonou a faculdade, passou a se dedicar a trabalhos domésticos na casa de alguns pais de suas amigas, que tentavam ajudá-la de alguma forma. Júlia sempre fora altiva, nunca se humilhou e mesmo naquela situação drástica enfrentou tudo e todos, ela endureceu.  Não era o mundo que ela projetara, não era um sonho, não era vida.
            Diferentemente dela, Otelo não soube lidar com a situação, as dificuldades financeiras e a proximidade do nascimento da criança, daquela quase maldita criança, distanciaram ele de Júlia e quando menos esperavam, já se sentiam estranhos vivendo no mesmo minúsculo e humilde espaço.
As acusações eram realizadas diariamente, um contra o outro, dor contra dor. De certa forma, a criança que nem viera ao mundo sentia isso e logo pagaria por um crime que nem ao menos sabia que existia. Otelo se embriagava mais e mais e já não era o mesmo, Júlia se afundava em trabalho e já vislumbrava num futuro virar o jogo. Voltar para a faculdade, criar o menino, contudo, aquele outrora fora seu amor, perdia-se em sonhos e devaneios. Ela não conseguia ajudá-lo e depois de certo tempo também não quis mais fazê-lo. A criança nasceu e mal sabia que um abismo de mágoas a esperava. Cansada daquele mundo, Júlia decidiu dar um basta e ir embora, aquilo era o fim para ele, tudo perdido e com uma vida tão difícil ele se perdia ainda mais dentro de si.
O tempo passou e Otelo assistiu de perto o crescimento de Júlia, viu como ela poderia crescer e superar aquilo, também a viu se envolver com outros amores outras histórias, era tudo muito nublado para ele, que mal sabia diferenciar a loucura de sua triste realidade. Mesmo com todo o esforço, Júlia jamais conseguiria se reerguer como diarista, ela não merecia e ele de alguma forma pensava em ajudá-la, nem que para isso fosse necessário mover céus e pedras.
            O alcoolismo transportou Otelo de seu mundo fantasiado para uma virulenta depressão. Ele depositara em si toda a culpa por aquilo e ao menos uma vez desejara não ter conhecido aquele que fora o grande amor da sua vida, restava então um último gesto de amor, a criança não poderia sofrer por eles e merecia de alguma forma ter o seu futuro assegurado, Otelo sabia disso e jurou para si mesmo que devolveria tudo o que ele pensou ter privado de Júlia. Em sua mente já perturbada tomou a mais triste de suas decisões.
            Era um domingo qualquer, daqueles que amanhecem com os pássaros, o jovem maestro buscou na loucura as respostas para as suas angústias. Pendurado na cozinha, Otelo fora encontrado, aos seus pés diários que se perderiam ao longo do tempo e uma carta com os dizeres

            “Meu amor, meu eterno amor, não saberia dizer-te adeus. Não culpe a criança, minha partida trará uma melhoria inesperada na sua vida, levo comigo a lembrança daquela menina que sempre viverá no meu olhar... Com amor, Otelo”.

            Durante dias incontáveis, Júlia chorou. Suas noites vazias e a solidão que a massacrara diariamente a moldaram numa outra mulher, fria, amargurada que cheia de remorsos não soube aceitar a partida do seu único amor. O dinheiro adquirido com o seguro de vida feito por ele nunca preenchera a sua ausência, aquele fora o seu último poema, o seu sacrifício, restava agora a Júlia seguir adiante, mesmo que não aceitasse a criança, mesmo que a culpasse por tudo, era necessário criá-la e fora assim que, o pequeno menino crescera. Sempre rotulado, escolhido como o vilão de uma história de amor fracassada, sempre criticado, esculpido pela dor e sofrimento de Júlia, fora assim que se moldara aquele que deveria ser um novo homem, um novo alicerce: Pietro.

FINAL DO CAPÍTULO 6, em breve... Mais novidades!!!

Continuação...


Luzes no interior da casa, alguns passos se dirigem a sala e estes sem dono, sem nome foram responsáveis por mergulhar Otelo em sua loucura pessoal, sem alternativas se jogou na “casinha do lixo” e lá ficou encolhido durante mais alguns minutos. Otelo jurava para si mesmo que se conseguisse sair dali ileso pagaria qualquer promessa, mas dentro dele uma pergunta se fazia presente: E Júlia? Ele precisava dela e no fundo sabia que se saísse dali sem vê-la todo sacrifício seria em vão.
            A cozinha se acende cada vez mais os passos se aproximam do humilde esconderijo de Otelo e ele já se preparava para o escândalo, os berros, a sirene e todo o carnaval que a mãe de Júlia iria fazer. Já imaginava até a surra que tomaria, na verdade já sentia até a dor...
            As luzes da varanda são acesas, bom agora é questão de segundos, Otelo sabe que será descoberto. Contudo, a lua lhe trouxe mais uma surpresa e uma voz doce ecoou dali
            - Otelo? Meu amor, eu não beijarei você fedendo...
            “Como assim?” Pensava Otelo. Como Júlia o descobrira ali? Tão rapidamente, logo Otelo que se sentia quase um James Bond ao entrar na casa dela. Contudo, seus pensamentos são interrompidos por mais passos e agora era o semblante de Júlia que ficara completamente frio
            - Rápido, saia daí! Meus pais acordaram! Vá pelo corredor da varanda e entre pela segunda janela, é o meu quarto.
            Otelo abriu um pequeno sorriso e antes mesmo dela falar outra vez, ele já havia fugido para o corredor.
            - Julhinha... Não é hora de estar acordada. Amanhã você tem inglês.
            - Eu sei mamãe, apenas queria olhar a lua, estava com saudade dela.
            - Nem pense nisso... Não quero saber de você relembrando aquele marginal. Já lhe disse, que o seu lugar é nos Estados Unidos, formada e linda, não aqui pensando em encontros ao luar com um qualquer.
            - Mas mãe...
            - Sem mas, vá para o seu quarto e só saia de lá amanhã.
            Em silêncio Júlia se dirigiu ao quarto, mal a sua mãe sabia que aquilo era o que ela desejara durante meses e muito menos que a sua pequena menina estava disposta a se tornar naquela noite uma nova pessoa, uma flor que desabrocharia em uma mulher.            

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Continuação do capítulo 6...


Parte 2: O Sacrifício

            Anos se passaram após aquele encontro sob o luar, e mesmo que eles continuassem a se ver esporadicamente, o sentimento cultivado por ele apenas amadurecera. Apesar disso, já havia muito tempo que ele não a vira e desejava fazê-lo o mais rápido possível. Mesmo assim, encontrar Júlia tinha se tornado algo cada vez mais sacrificante e doloroso. Os pais dela desconfiavam de um possível relacionamento e aquilo com certeza estaria fora dos planos deles. Júlia era a menina de ouro, àquela que fora preparada desde o berço para se tornar a médica da família, antes mesmo de passar no vestibular, seus pais, médicos também, já estavam se preparando para enviá-la a Boston onde faria a sua especialização em Neurologia. Pais... São sempre os mesmos, organizam tudo, planejam cada passo, exceto um: a vontade individual do filho.
            Júlia cresceu assim, cercada de planos (dos outros) e ao mesmo tempo mergulhada em amor. Otelo não teve a mesma sorte, família pobre e pai alcoólatra, combinação explosiva que resultava em sessões semanais de espancamento. Às vezes, o garoto apanhava tanto que mal podia carregar o violino de tantos machucados em suas mãos. Apesar de tudo, Otelo possuía uma luz dentro de si que encantava a todos, ou pelo menos quase todos, e com esse dom ele conseguia seguir a vida. Ao entardecer, Otelo se dirigiu até a rua de Júlia e lá ficou durante horas, seu objetivo imediato: vê-la a qualquer custo.
            A noite já entrava madrugada a dentro e Otelo permanecia imóvel e angustiado, não imaginava o que poderia acontecer, mas desejava com o mais profundo sentimento encontrá-la, resolveu arriscar. Não aguentava mais ficar ali e depois de alguns segundos de hesitação optou por pular o muro da casa dela, aquilo parecia uma ideia maluca, mas por outro lado, o que poderia acontecer? Apanhar da polícia? Ele já iria apanhar do pai mesmo, uma surra a menos ou a mais não iria fazer diferença.
            Os passos de Otelo gracejavam lentamente pela varanda de Júlia, nenhum sinal de gente acordada, e isso naquele momento parecia ser muito bom. A escuridão da casa pregava peças na mente dele e o medo de ser flagrado, antes diminuto, agora se apresentava constante. “Que ideia maluca?!” Ele não parava de pensar, era preciso chegar à janela do quarto dela, o mais rápido possível, mas como? Se ele mal sabia se estava na casa correta.
            Seu coração apertado guiava o seu corpo casa a dentro, mas a sua mente exigia a sua saída imediata, o jovem garoto estava a beira da loucura e a ansiedade somente piorava a situação. “Será que tem cachorro? Será que o pai dela anda armado? O que eu vou dizer aos meus pais?” Otelo não parava de pensar, seus pensamentos pareciam paralelepípedos lançados contra ele e o garoto, ingênuo e ao mesmo tempo altivo, sabia que no fundo não teria outra chance daquela.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Continuação do capítulo 6...


...
Após pedalar bastante e esperar alguns minutos, ela apareceu. O beijo foi longo e com os segundos que se passavam eles se perdiam em meio a noite, em meio ao luar. A expectativa e toda a ansiedade valeram a pena.

            - Júlia!
            - Eu?
            - Quase ia me esquecendo!!
            - Trouxe uma surpresa para você!
            - Já sei!!! Um anel enorme repleto de diamantes!
            - Não sua boba! Trouxe algo mais valioso...
            - Meu amor basta apenas você ter vindo que eu já ganhei a semana. Você é o meu diamante.
            - Owwwww. Assim eu fico sem jeito menina. Bem, vou mostrar logo, senão eu perco a coragem... Saiba que eu não sei se ficou bom, mas fiz de todo o coração.
            - Ai mostra logo menino, já estou curiosa.
            - Tá certo. Lá vai

Confissões
E eu desisto para sempre da minha redenção
Porque eu mesmo sei que o mais próximo do céu que poderei chegar
Será quando estiver ao seu lado

E por mais que você me peça para ir
Eu simplesmente não voltarei para casa agora

E por mais que lutemos contra as nossas lágrimas
Ainda viveremos e choraremos o suficiente
E quando tudo parecer quebrado ou destruído
Eu não me importarei em consertá-lo mais uma vez

Talvez porque eu já tenha percebido
Que eu gosto mesmo de você
E ninguém nunca poderá dizer isso da forma que eu te digo
E se você quiser que eu feche meus olhos para tudo ao meu redor
Talvez eu até fecharia

E se simplesmente o mundo resolvesse acabar agora
Nesse dia eu não estarei me importando para as escolhas que eu não fiz

Talvez até porque eu esteja mesmo apaixonado por você
E se for isso mesmo
Nada mais me importa
Nem mesmo as coisas que eu nem sequer sei se desejarei fazer

E se você simplesmente me pedir para fechar os olhos
Eu apenas segurarei a sua mão
E irei me deixar levar
Me permitir
Porque faz muito pouco tempo que eu percebi que quero mesmo  estar com você
(Noturno)

            - E aí? Me fala o que você achou?!

            Júlia nada falou. Seus olhos firmes estavam agora completamente desarmados, Otelo jamais a vira daquela maneira e de certa forma ela o assustava ao reagir daquele jeito. Será que ela não gostou? Será que eu forcei a barra demais? Eram perguntas que ribombavam em seu coração e meio já sem jeito, ele suspirou...

            - Olha Júlia, desculpa, eu não queria forçar a barra...
            - Fica calado Otelo, apenas me beija.
           
            Júlia o interrompera com um profundo beijo, abraçou-o com nunca antes tinha feito, seus carinhos imploravam por proteção, Otelo ficava espantado pela forma como ela reagira e sem jeito tentava corresponder às suas ações que como uma maré em fúria afogava Otelo num carinho necessitado de um coração que a muito tempo sofrido, a muito sozinho, jamais tinha encontrado a sinceridade que encontrava naquele garoto. Claro que ela já namorara antes com outros meninos, mas aquele era diferente, e por mais que sua mãe a ensinasse como fisgar o melhor partido do curso, ela percebia que tudo aquilo, todos aqueles conselhos, eram apenas formas disfarçadas de leiloar o corpo sacrificando com ele coração, e assim, depois de tudo aquilo, ela percebia que a muito tinha andado perdida em promessas falsas de independência e liberdade que, por serem plenas, jamais seriam encontradas pelas palavras da mãe. Jamais seriam conquistadas em festas ou bailinhos.  Era difícil, e talvez até mesmo triste, mas mesmo depois de muito tempo, Júlia aprendera a amar e descobriu meio que por acaso que a liberdade plena somente é possível através do amor.        

terça-feira, 15 de maio de 2012

CAPÍTULO 6: Os pecados dos pais serão pagos pelos filhos...


PARTE I: O despertar

Aracaju, 1985

            Era tarde e Otelo ainda não retornara para casa, a tentação de um encontro às escondidas com Júlia valeria o sacrifício de alguns dias de castigo. Ele um jovem músico que possuía mais sonhos do que posses, ela uma jovem estudante de Medicina que possuía mais posses do que sonhos. Como já era previsto, o romance não daria certo, mas ainda assim ele a desejava e no fundo sabia que ela o correspondia.
            Após um dia inteiro de planos mirabolantes, Otelo e Júlia decidiram se encontrar na Acústica da Universidade, para conversar, sentir um ao outro, descobrir que aquilo não era ilusão, simplesmente às escondidas, deixar o amor fazer a sua parte. Ele sabia que a aula dela acabava por volta das dez, então era só pegar a bike e ir direto da escola para a UFS, talvez o perigo oferecido pela noite poderia ter feito com que ele mudasse de ideia, mas a vontade que nutria de simplesmente ouvir o sorriso daquela menina era impressionante. A força que ela exercia sobre Otelo era deslumbrante e ele já não era mais senhor de si, deixava-se guiar pelas promessas de um sentimento que ninguém nunca soube explicar ao certo.
            É interessante como nós seres humanos perdemos o controle sobre si tão facilmente basta um olhar e tudo cair por terra. Foi assim com Otelo, estudante secundarista, 17 anos, que tocava violino na Praça da Catedral para inteirar alguns trocados e com eles suportar as dificuldades de uma vida honestamente humilde. Numa certa manhã, dessas que amanhecem por aí, enquanto mergulhava seus sonhos na poesia musical algo o tirou de si. Uma garota, para ele muito mais que isso. Júlia, 18 anos, recém-aprovada no vestibular que mesmo descrente, foi a missa para cumprir a promessa feita a mãe: ir a Igreja para agradecer. E como se já estivesse previsto, não entrou na Igreja naquela manhã e mesmo sem ter cumprido a promessa feita a mãe, com certeza ela cumprira os desígnios religiosos. Não há nada mais divino do que o amor e foi através da música de Otelo e a descrença de Júlia que aquele confuso e conturbado amor começou.
            Todas as vezes que ele se lembrava daquele dia seu coração apertava e fazia valer cada pedalada, cada bronca, qualquer coisa para estar com ela. Nenhuma diferença se fazia valer entre eles, era tudo tão momentaneamente belo que mais parecia um sonho. E como todo sonho está destinado a acabar, o de Otelo não seria diferente.
            Não demorou muito para que a mãe dela descobrisse o romance e como era de se esperar, logo eles foram proibidos de se ver, caberia então a Otelo se arriscar e se encontrar no meio da noite, em plena Universidade, para estar apenas 30 minutos com a menina mais fantástica do mundo, àquela que o teria salvo da solidão. Ele provavelmente apanharia do pai, que de tão bêbado, não entendia o amor e ela ficaria de castigo, mas ainda assim, o amor prevaleceria, pelo menos por enquanto.
            O mais impressionante daquela relação é que toda a doçura, toda a poesia era dele, Júlia apesar de menina, foi endurecida pela mãe e ele apesar de uma vida tão sacrificante e, por muitas vezes injusta, teria voltado seus olhos apenas para a mais pura sincera bondade, ainda assim, eles se amavam. Ambos sabiam que eram os únicos que se entendiam do início ao fim.

Continuação do Capítulo V


...
Dalila demorou pouco mais de 10 minutos para chegar até a minha sala, sentar e sorrir. Eu sabia que ela sabia, qualquer idiota perceberia que eu desejava fazer daquela reunião de negócios uma forma de apagar minhas mágoas sobre Alice. Eu sei, eu sei, não é a postura mais nobre, mas que se foda. De certa maneira eu sentia que ela também queria aquilo. E quando eu já me concentrava na primeira cantada, ela disparou:

            - Bem Pietro, eu serei direta e clara, até porque conheço o seu gênio e sei que você odeia rodeios. Quero abrir um curso e você é o nome mais indicado para ser o meu sócio. Quero você ao meu lado, até porque você possui todas as qualidades que eu busco. Você é firme, jovem e não se curva a ninguém. Preciso de pessoas assim.
            Aquilo definitivamente era brochante e adivinhem, mais uma vez eu não sabia o que fazer, restava apenas ouvir a proposta dela e encher nossos copos com whisky, talvez a noite terminasse bem, mesmo sabendo que no fundo eu iria meter a mão mais uma vez em merda.
            - Ficou sem voz Pietro? Eu entendo, mas sei que nós dois desejamos nos livrar daquela Escola e o único caminho é esse. É a única forma de nos livrarmos dos domínios de Eva.
            - Olha Dalila, eu não sei bem o que você viu ou vê em mim, mas acredite, eu não sou a pessoa mais indicada para isso.
            - Pietro!
            A voz dela invadiu a sala e me paralisou. Nunca tinha visto aquele olhar, aquela força e meio que sem perceber, eu já estava rendido.
            - Até quando você ficará em cima do muro? Até quando você se comportará como se não estivesse no jogo? Não dá para evitá-lo Pietro! Ou você entra pra valer na partida ou será engolido por ela, não há outro meio. Somente poderemos quebrar as forças daquela maldita Escola entrando ainda mais nela, iremos implodi-la e quando Eva menos perceber já conseguiremos tomar tudo o que um dia ela roubou de nós. É a nossa sobrevivência.
            - E qual o papel de Abel nisso?
            - Ora Pietro! Você mais do que ninguém sabe que Abel é o cara mais próximo da diretora, se nós conseguirmos manipulá-lo vamos fazer com que ele diga exatamente o que ela quer ouvir, se controlarmos a informação, controlaremos tudo. Você sabe disso.
            Ela estava correta... Mas...
            - Não pense muito, é agora ou nunca. Seu desejo de revidar começa agora.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

CAPÍTULO 5: O TROCO



            O final de semana havia sido uma tempestade emocional sem precedentes, aliás, aqueles últimos dias pareciam ter sido anos. Desde o sábado a noite que eu não falava com Miguel e também não estava muito preocupado em encontrá-lo. A possibilidade de encontrar Alice acidentalmente mais uma vez era extremamente desconfortante. Enfim, não podia perder muito tempo pensando naquilo, afinal de contas, minha via crucis havia recomeçado e lá estava eu mais uma vez como sempre as 7 da manhã.
            Aquela semana prometia acontecimentos marcantes, principalmente pelos rumores que circulavam pela Escola a respeito do possível aumento salarial. Embora eu duvidasse muito, e imaginasse que fosse apenas mais uma história de corredor, tinha expectativas, até porque a esperança apesar de morrer é a última a completar a cena.
            - Jovem Pietro!
            Abel... Sempre Abel... Aquele ar de superioridade me incomodava e todas as vezes que ele pronunciava o meu nome eu me sentia vigiado.
            - Oi Abel, como vai?
            - Melhor impossível... Está sabendo do aumento?
            - Não... Que aumento?
            - Nem te conto, a dona Eva publicou uma nota, na qual pretende acatar a decisão do sindicato e nos dar o aumento padrão.
            - Quantas migalhas foram dessa vez? 3 ou 4,2%?
            - Não fale assim jovem... As coisas poderiam ser bem piores, esse aumento poderia nem existir.
            A única coisa que o Abel não tinha se tocado ainda, é que as coisas já estavam bem piores. Principalmente com esses aumentos amarrados que a diretora nos concedia. Isso sem falar nas negociatas ilegais que existiam dentro da Escola. O esquema era simples, a Escola não pretendia em nenhuma hipótese pagar impostos a mais devido aos encargos trabalhistas. Por isso negociava com o futuro contratado pagar uma parte (diga-se de passagem, a menor) na carteira e a outra parte em cash ou via depósito. De qualquer maneira, o dinheiro total recebido era o valor combinado e isso para os pobres diabos licenciados era motivo para festa e comemoração. O que eles se esqueciam, é de como o futuro pode ser cruel com os mais velhos, que por atenderem as exigências de uma mulher sedenta por poder, acabavam negociando um futuro que sequer eles o haviam conhecido. A pergunta que deve estar na cabeça agora é: e se o professor não aceitar tal condição? Ele não é contratado. Simples, objetivo e rápido. Dessa maneira, os mais jovens eram sempre o alvo desse tipo de contrato, vi muitos caírem nessa armadilha, nessa sedução, eu mesmo havia sido um deles.

- Jovem Pietro! Eu preciso muito falar com você.
            - Na verdade nós precisamos...

            As palavras Dalila invadiram o recinto, e eu próprio me espantei com a aproximação dela.

            - Precisamos tratar de algo que pode envolver o seu interesse. E acho que temos muitos interesses em comum...
            - Olha pessoal, hoje é segunda-feira ainda. É algo tão urgente que não pode esperar o final de semana?
            - Não Pietro!

            Responderam ambos ao mesmo tempo com olhares fixos em mim. Dalila segurou o meu braço e continuou

            - O que eu irei conversar com você hoje, Pietro, é algo que definitivamente mudará sua vida.
            - Tudo bem, eu dou aula até as 9 da noite, se puderem, eu os encontrarei em algum lugar bom pra nós três.
            - A gente te liga então. Vá para sala agora que seus alunos estão te esperando.
           
            Dalila possuía um jeito meio que autoritária, mas de certa maneira, eu sentia certa simpatia por ela. Tinha sido minha professora no passado, quando ainda era muito jovem e desde então criou certa afinidade comigo.         Pouco sabia da sua história, apenas sabia que ela estava no mesmo barco que eu. Jovem, talentosa, inocentemente ambiciosa e presa às amarras da poderosa escola. Se fosse somente o Abel a pedir um encontro comigo, obviamente eu inventaria uma desculpa, mas como era ela, valia a pena um pouco de atenção.
            As horas se arrastaram durante o dia, e toda aquela pressão pela revisão completa do conteúdo me incomodava, no fundo, eu sabia que ali não havia produção de conhecimento algum, apenas a repetição de algumas dicas manjadas para um vestibular ridículo que refletia a mediocridade do nosso sistema de ensino. Contudo, eu não estava ali para julgar ou muito menos mudar o sistema, eu me sentia como um fantoche num circo de lunáticos onde cada um possuía o seu papel, o meu consistia em ser o suposto melhor professor de literatura.
            Apesar da curiosidade sobre a tal conversa com Dalila, eu não me apressei. Após o encerramento do meu horário voltei para o apê, organizei algumas coisas e fiquei estático diante da TV. Ela me disse que ligaria, pensei, logo não irei demonstrar ansiedade. Às 22 horas meu celular tocou. Não, não era ela. Apesar do salto que dei da cama logo percebi que aquele era o toque destinado a Miguel e como eu já havia combinado comigo mesmo eu não iria atender. O telefone tocou mais três vezes e de certa maneira eu já imaginava o que ele queria conversar comigo, algo que definitivamente eu desejava evitar.
            Levantei da cama, fiz outro lanche, andei pelo apê e nada dela ligar. Resolvi descer um pouco, espairecer, tentar relaxar e nada. Às vezes tinha a impressão que o celular estava tocando, mas no fundo não era nada mais do que fruto da minha imaginação e ansiedade. Já passava da 1 da manhã e eu sabia que já deveria estar dormindo, afinal de contas tinha uma terça lotada de afazeres e dezenas de provas para corrigir. Resolvi ir deitar, mesmo assim não preguei o olho, às 5horas e 40 da matina eu recebo um sms: Desculpa Pietro, não pude te ligar, outra hora marcamos aquela conversa. Como já disse, vai mudar a sua vida.
            Puta que pariu, aquilo me deixou possesso. A sensação que eu tinha é que ela estava jogando com a minha curiosidade, atraindo-me a sua teia como uma mosquinha que ela em breve iria devorar. Mesmo assim, eu iria até o fim, só que dessa vez iria ser do meu jeito. Respondi a sms de maneira seca e fria: Hoje a noite, às 10 na minha casa. Não leve Abel. Obviamente eu guardava outros interesses por trás disso.
            22 horas, 38 minutos e muitos segundos. A desgraçada iria me deixar esperando outra vez. Aquilo já estava se tornando ridículo e eu obviamente mais ridículo ainda. Resolvi dar um basta naquilo, tirei a roupa desliguei Home Theater e fui me deitar. Parece até brincadeira, mas assim que fechei os olhos, o interfone disparou e meio que já sabia que era ela que estava na porta.