Carpe Diem

E que venha a loucura

E que venha com toda a força

Força que me faça despencar das minhas próprias crenças

Crenças loucas


E que venha a fé

E que venha você

Renda-me!

Lute e enlouqueça também

Fuja da realidade

E se entregue às oportunidades...


Abandone a sua razão insana

E se afogue nesse mar de incertezas

Seja puramente profana

E que o nosso juiz seja a nossa vontade


E que o nosso controle e bom senso sejam passageiros

Viajantes de longa data

E que se percam na nossa odisséia

Na nossa aventura

Com nossa loucura

Buscando o porquê de ainda existir...

(Noturno)

quinta-feira, 1 de novembro de 2012


PARTE 4: O diário

            E se tudo na sua vida perdesse o sentido? Se seus sonhos fossem apenas ilusões distantes, opacas e entristecidas pelo tempo? Se as cores de seus dias se resumissem a meros tons de cinza? Pois é, eu não sabia muito bem o que fazer. Sentia ainda um mal-estar devido a noite passada, que além de ter ido para casa tarde, não conseguira fechar os olhos, descansar. Minha cabeça estava pesada e eu arrastava meu corpo pelos corredores da escola de sala em sala como se apenas estivesse alternando sessões de tortura, perdia-me em meus próprios pensamentos e como uma tartaruga fechava-me ainda mais na armadura dos meus devaneios. O dia não seria tão cheio assim, eram apenas dez aulas e logo logo eu estaria em casa para descansar. No entanto, sabia que precisava ir logo à casa de Dona Júlia, pois minha querida mamãe solicitara os meus serviços braçais em sua pequena reforma. Sozinho, possivelmente eu não daria conta, justamente por isso convidar Miguel se apresentava para mim como uma opção óbvia, além disso, precisava conversar com ele sobre tudo que estava acontecendo. Tique taque, o tempo corria, as opções de escolha eram muitas, no entanto, as certezas eram cada vê mais escassas. O telefone toca...

            - Miguel???
            - Fala boiolinha! Quanto tempo! Esqueceu seu amor foi??
            - O mesmo fresco de sempre né?
            - É claro! Cheio de amor para te dar! (Risos)
            - Cara, precisarei da sua ajuda... Tá afim de fazer uma forcinha?
            - Como assim?
            - Dona Júlia solicita os meus serviços. Ela está querendo que eu ajeite o quarto da minha irmã, muito provavelmente não será apenas isso, enfim... Você entendeu.
            - Para beber ninguém me chama né boiola? Mas tudo bem. Quando é?
            - Amanhã pela manhã, às oito horas. De lá queria surfar um pouco... O que você acha?
            - Poxa, gostei! A gente sai de lá meio-dia e depois segue para praia. A noite rola até uma baladazinha, o que acha?
            - Cara, não vou garantir a balada porque trabalharei no domingo, mas a praia tá certa!
            - Tu é uma “Isaura” mesmo né? Quem diabos trabalha no domingo?
            - Eu?
            - É! Só você mesmo! Você trabalha demais cara!!! Isso vai acabar te matando!
            - Ihhh lá vem sermão... Ói, a gente se vê amanhã então?
            - Tá boiola! Mas vê se me ouve...
            - Miguelito, preciso ir, depois nos falamos e aí você me xinga o quanto quiser! Xerunda.
            - Calm...

            Desliguei. Não havia tempo para aquilo. Eu sei que ele tinha razão, mas afinal de contas o que diabos eu poderia fazer? O sistema era assim. Ele te consome, absorve todas as suas horas vagas de tal maneira que você passa a viver em função dele, tudo gira ao redor da Escola, de uma forma, que depois de certo tempo, ela passa a habitar você. Já cansei de acordar no meio da madrugada, preocupado se estava ou não na hora de ir trabalhar, de simplesmente não conseguir relaxar por ter que preparar aulas, apostilas, provas, simulados, aulas extras e tudo que o sistema exigia de mim. É meu amigo, a vida não era fácil, não era mesmo.

...

Sábado pela manhã

            Ir à casa de Dona Júlia era extremamente desconfortável para mim, não sabia como me portar, mal sabia como olhar nos olhos dela, era um misto de tristeza e dor por angústias e mágoas mal curadas de um passado recente. Feridas continuavam abertas entre nós e eu mal sabia que talvez elas nunca cicatrizassem. Ao menos Miguel iria comigo, o trabalho árduo e a boa conversa me distrairiam por algum momento, o suficiente para não pensar nos problemas cotidianos.
            Ao chegar, Miguel esperava-me na porta e rapidamente suspirou

            - Atrasado mais uma vez não é doutor Pietro?
            - Cara foi mal, dormi demais...
            - Claro né? Você nunca descansa... Passa horas a fio na madrugada, o que diabos você tanto busca? O que tanto te incomoda?
            - Ihhh vai começar é??? Vamos começar logo essa mudança porque ainda quero surfar hoje.
            - Isso... Vai sempre se esquivar da conversa não é? Tudo bem, você é que sabe!

            Em meus pensamentos eu sabia que Miguel estava certo, mas o que eu poderia responder? Não fazia ideia do que buscava, do que queria... A única certeza que tinha é que naquele momento existia algo que me incomodava: Alice. E essa agora somada ao poder de Dalila e a interferência da Escola, bem, não era uma combinação agradável.
            Passamos horas desmontando guarda-roupas e camas, o que era para ser uma mera mudança de móveis de um quarto para o outro se transformou num reforma na casa inteira. Dona Júlia sabia que não deixaríamos trabalho por fazer e justamente por isso, fez o que eu já esperava, tirou proveito. Mal almoçamos e na esperança vã de terminar o serviço logo para usufruirmos o melhor da praia voltamos ao trabalho, contudo, o trabalho não acabava. Sempre apareciam coisas novas, móveis novos. Quando eu menos percebi já estava ajeitando encanamento e mexendo na parte elétrica da casa.

            - Ei Pietro, que quarto é aquele?
            - Cara, não sei, vamos terminar isso logo porque eu quero ir à praia!
            - Man desiste disso vai! Já são quase 16horas. Mesmo se fôssemos agora encontraríamos apenas resto de macumba, traveco e maconheiro! Ou seja, tudo que você gosta!
            - Porra nenhuma, ainda teria os usuários de crack, presentes do nosso ilustre governo e de uma sociedade hipócrita que nega o que está diante de seus olhos. Uma sociedade podre e decadente movida por modismos consumistas propagandeados pelas nossas emissoras de Tv!
            - Ihhhh falou o intelectual! Está parecendo aqueles esquerdóides que você tanto ama na Universidade.
            - Esquece vai!
            - Calma bichinha! É só uma brincadeira. Mas me diga! O que tem naquele quarto?
            - Cara, não inventa mais trabalho vai! To perdendo meu único dia de folga nessa bosta de reforma que Dona Júlia inventou!
            - Não fala assim do meu amor!
            - Vai te fu... Vai Miguel!
            - Cara, já estamos na merda, pelo menos vamos fazer o serviço completo.
            - Man, não sei não! Dona Júlia nunca me deixou entrar nesse quarto, é melhor deixar isso aí!
            - To entrando!

            Miguel era assim, não havia protocolos ou obstáculos que o impedissem. Sempre com uma visão positiva das coisas, era o tipo do cara que sempre via a metade do copo cheio. Não sei o que seria de mim sem ele, era meu irmão. O irmão que nunca tive, o pai que nunca me abraçou e de que nunca Dona Júlia falou a respeito.

            - Cara! Que bagunça isso aqui ó?! Isso sem falar que a luz não tá funcionando direito. Sobe aí que eu vou desligar o disjuntor!
            - Desliga essa merda direito, não quero morrer grudado no assoalho de Dona Júlia.
            - Calma bichi...
            - Ahhhh

            A queda foi rápida. Mas isso não a tornou menos dolorosa, não havia levado em consideração que talvez a escada não suportasse o meu peso, ou simples fato dela estar em falso. De qualquer maneira, quando menos percebi, já estava no chão. O impacto foi tão grande que rachou o velho piso de madeira, espalhando os tacos daquele velho quarto como se fosse palitos de picolé.

            - Cara tu tá pesado viu? Você quebrou o chão! Risos
            - Para de gracinha e vem me ajudar!
            - Cara você quebrou o chão!!! Risos
            - Não quebrei não! Essa merda tem um fundo falso!
            - Ué? Como assim? Dona Júlia esconde segredos???
            - Quem sabe né? Talvez ela esconda sua identidade secreta de quando ela era integrante da SS nazista! Risos
            - Você é péssimo Pietro!
            - Você gosta dela porque ela não é a sua mãe! Se fosse você conheceria aquela mistura de Adolf Hitler e Pol Pot em forma de mulher! Stálin perto dela é bichinha!!!
            - Pietro, o que é isso? Realmente tem um fundo falso aqui.
            - Hã? Não mexe aí cara!
            - Calma! Ei!!! Tem livros aqui!
            - Como assim?
- Calma, não são livros, mais parecem diários...
            - Diários??
            - Sim, desde quando sua mãe escreve diários?
            - Desde nunca. Deixe-me olhar isso aí! Estão assinados por...
            - Por quem? Que mistério é esse fala logo.

            Pietro recuou. Sua pele estava pálida e parecia que ele acabara de ver um fantasma, não expressava nenhuma reação, muito menos palavras. Aquilo estava assustando Miguel, pois nunca vira seu amigo assim. Nunca tinha visto Pietro demonstrar o sentimento que ele mais repugnava: medo.

            - Pietro? O que foi?
            - Cara eu preciso ir!
            - Pera como assim? O que aconteceu? De quem são esses diários?
            - Não importa!
            - Claro que importa! Olha o seu estado! O que aconteceu?

            Mal terminara a pergunta e Pietro virou as costas e saiu do quarto como se fugisse de uma alma penada, ele parecia atordoado e mal sabia como se comportar diante daquilo. Miguel o seguira e tentou segurá-lo pelo braço, mas foi em vão. Debaixo do seu braço três diários cuja assinatura repousa no canto direito com um nome simples e ao mesmo tempo poético. Um nome forte que talvez carregasse um lado negro, um passado tristemente esquecido que agora retornara com toda força para reivindicar o seu espaço, o seu direito de se pronunciar, um nome que transportara uma história que fazia pela primeira vez Pietro esquecer a Escola, Alice ou Dalila, que o fizera deixar tudo para trás sem nem ao menos falar com o seu irmão, um nome, um simples nome. Uma assinatura de dor, uma cicatriz, que agora voltava a sangrar: Otelo...


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