PARTE 4: O diário
E
se tudo na sua vida perdesse o sentido? Se seus sonhos fossem apenas ilusões
distantes, opacas e entristecidas pelo tempo? Se as cores de seus dias se
resumissem a meros tons de cinza? Pois é, eu não sabia muito bem o que fazer.
Sentia ainda um mal-estar devido a noite passada, que além de ter ido para casa
tarde, não conseguira fechar os olhos, descansar. Minha cabeça estava pesada e
eu arrastava meu corpo pelos corredores da escola de sala em sala como se
apenas estivesse alternando sessões de tortura, perdia-me em meus próprios
pensamentos e como uma tartaruga fechava-me ainda mais na armadura dos meus
devaneios. O dia não seria tão cheio assim, eram apenas dez aulas e logo logo
eu estaria em casa para descansar. No entanto, sabia que precisava ir logo à
casa de Dona Júlia, pois minha querida mamãe solicitara os meus serviços
braçais em sua pequena reforma. Sozinho, possivelmente eu não daria conta,
justamente por isso convidar Miguel se apresentava para mim como uma opção
óbvia, além disso, precisava conversar com ele sobre tudo que estava
acontecendo. Tique taque, o tempo corria, as opções de escolha eram muitas, no
entanto, as certezas eram cada vê mais escassas. O telefone toca...
-
Miguel???
-
Fala boiolinha! Quanto tempo! Esqueceu seu amor foi??
-
O mesmo fresco de sempre né?
-
É claro! Cheio de amor para te dar! (Risos)
-
Cara, precisarei da sua ajuda... Tá afim de fazer uma forcinha?
-
Como assim?
-
Dona Júlia solicita os meus serviços. Ela está querendo que eu ajeite o quarto
da minha irmã, muito provavelmente não será apenas isso, enfim... Você
entendeu.
-
Para beber ninguém me chama né boiola? Mas tudo bem. Quando é?
-
Amanhã pela manhã, às oito horas. De lá queria surfar um pouco... O que você
acha?
-
Poxa, gostei! A gente sai de lá meio-dia e depois segue para praia. A noite
rola até uma baladazinha, o que acha?
-
Cara, não vou garantir a balada porque trabalharei no domingo, mas a praia tá
certa!
-
Tu é uma “Isaura” mesmo né? Quem diabos trabalha no domingo?
-
Eu?
-
É! Só você mesmo! Você trabalha demais cara!!! Isso vai acabar te matando!
-
Ihhh lá vem sermão... Ói, a gente se vê amanhã então?
-
Tá boiola! Mas vê se me ouve...
-
Miguelito, preciso ir, depois nos falamos e aí você me xinga o quanto quiser!
Xerunda.
-
Calm...
Desliguei.
Não havia tempo para aquilo. Eu sei que ele tinha razão, mas afinal de contas o
que diabos eu poderia fazer? O sistema era assim. Ele te consome, absorve todas
as suas horas vagas de tal maneira que você passa a viver em função dele, tudo
gira ao redor da Escola, de uma forma, que depois de certo tempo, ela passa a
habitar você. Já cansei de acordar no meio da madrugada, preocupado se estava
ou não na hora de ir trabalhar, de simplesmente não conseguir relaxar por ter
que preparar aulas, apostilas, provas, simulados, aulas extras e tudo que o
sistema exigia de mim. É meu amigo, a vida não era fácil, não era mesmo.
...
Sábado pela manhã
Ir
à casa de Dona Júlia era extremamente desconfortável para mim, não sabia como
me portar, mal sabia como olhar nos olhos dela, era um misto de tristeza e dor
por angústias e mágoas mal curadas de um passado recente. Feridas continuavam
abertas entre nós e eu mal sabia que talvez elas nunca cicatrizassem. Ao menos
Miguel iria comigo, o trabalho árduo e a boa conversa me distrairiam por algum
momento, o suficiente para não pensar nos problemas cotidianos.
Ao
chegar, Miguel esperava-me na porta e rapidamente suspirou
-
Atrasado mais uma vez não é doutor Pietro?
-
Cara foi mal, dormi demais...
-
Claro né? Você nunca descansa... Passa horas a fio na madrugada, o que diabos
você tanto busca? O que tanto te incomoda?
-
Ihhh vai começar é??? Vamos começar logo essa mudança porque ainda quero surfar
hoje.
-
Isso... Vai sempre se esquivar da conversa não é? Tudo bem, você é que sabe!
Em
meus pensamentos eu sabia que Miguel estava certo, mas o que eu poderia responder?
Não fazia ideia do que buscava, do que queria... A única certeza que tinha é
que naquele momento existia algo que me incomodava: Alice. E essa agora somada
ao poder de Dalila e a interferência da Escola, bem, não era uma combinação
agradável.
Passamos
horas desmontando guarda-roupas e camas, o que era para ser uma mera mudança de
móveis de um quarto para o outro se transformou num reforma na casa inteira.
Dona Júlia sabia que não deixaríamos trabalho por fazer e justamente por isso,
fez o que eu já esperava, tirou proveito. Mal almoçamos e na esperança vã de
terminar o serviço logo para usufruirmos o melhor da praia voltamos ao
trabalho, contudo, o trabalho não acabava. Sempre apareciam coisas novas,
móveis novos. Quando eu menos percebi já estava ajeitando encanamento e mexendo
na parte elétrica da casa.
-
Ei Pietro, que quarto é aquele?
-
Cara, não sei, vamos terminar isso logo porque eu quero ir à praia!
-
Man desiste disso vai! Já são quase 16horas. Mesmo se fôssemos agora
encontraríamos apenas resto de macumba, traveco e maconheiro! Ou seja, tudo que
você gosta!
-
Porra nenhuma, ainda teria os usuários de crack, presentes do nosso ilustre
governo e de uma sociedade hipócrita que nega o que está diante de seus olhos.
Uma sociedade podre e decadente movida por modismos consumistas propagandeados
pelas nossas emissoras de Tv!
-
Ihhhh falou o intelectual! Está parecendo aqueles esquerdóides que você tanto
ama na Universidade.
-
Esquece vai!
-
Calma bichinha! É só uma brincadeira. Mas me diga! O que tem naquele quarto?
-
Cara, não inventa mais trabalho vai! To perdendo meu único dia de folga nessa
bosta de reforma que Dona Júlia inventou!
-
Não fala assim do meu amor!
-
Vai te fu... Vai Miguel!
-
Cara, já estamos na merda, pelo menos vamos fazer o serviço completo.
-
Man, não sei não! Dona Júlia nunca me deixou entrar nesse quarto, é melhor
deixar isso aí!
-
To entrando!
Miguel
era assim, não havia protocolos ou obstáculos que o impedissem. Sempre com uma
visão positiva das coisas, era o tipo do cara que sempre via a metade do copo
cheio. Não sei o que seria de mim sem ele, era meu irmão. O irmão que nunca
tive, o pai que nunca me abraçou e de que nunca Dona Júlia falou a respeito.
-
Cara! Que bagunça isso aqui ó?! Isso sem falar que a luz não tá funcionando
direito. Sobe aí que eu vou desligar o disjuntor!
-
Desliga essa merda direito, não quero morrer grudado no assoalho de Dona Júlia.
-
Calma bichi...
-
Ahhhh
A
queda foi rápida. Mas isso não a tornou menos dolorosa, não havia levado em
consideração que talvez a escada não suportasse o meu peso, ou simples fato
dela estar em falso. De qualquer maneira, quando menos percebi, já estava no
chão. O impacto foi tão grande que rachou o velho piso de madeira, espalhando
os tacos daquele velho quarto como se fosse palitos de picolé.
-
Cara tu tá pesado viu? Você quebrou o chão! Risos
-
Para de gracinha e vem me ajudar!
-
Cara você quebrou o chão!!! Risos
-
Não quebrei não! Essa merda tem um fundo falso!
-
Ué? Como assim? Dona Júlia esconde segredos???
-
Quem sabe né? Talvez ela esconda sua identidade secreta de quando ela era
integrante da SS nazista! Risos
-
Você é péssimo Pietro!
-
Você gosta dela porque ela não é a sua mãe! Se fosse você conheceria aquela mistura de Adolf Hitler e Pol Pot em forma de
mulher! Stálin perto dela é bichinha!!!
-
Pietro, o que é isso? Realmente tem um fundo falso aqui.
-
Hã? Não mexe aí cara!
-
Calma! Ei!!! Tem livros aqui!
-
Como assim?
- Calma, não são
livros, mais parecem diários...
-
Diários??
-
Sim, desde quando sua mãe escreve diários?
-
Desde nunca. Deixe-me olhar isso aí! Estão assinados por...
-
Por quem? Que mistério é esse fala logo.
Pietro
recuou. Sua pele estava pálida e parecia que ele acabara de ver um fantasma,
não expressava nenhuma reação, muito menos palavras. Aquilo estava assustando
Miguel, pois nunca vira seu amigo assim. Nunca tinha visto Pietro demonstrar o
sentimento que ele mais repugnava: medo.
-
Pietro? O que foi?
-
Cara eu preciso ir!
-
Pera como assim? O que aconteceu? De quem são esses diários?
-
Não importa!
-
Claro que importa! Olha o seu estado! O que aconteceu?
Mal
terminara a pergunta e Pietro virou as costas e saiu do quarto como se fugisse
de uma alma penada, ele parecia atordoado e mal sabia como se comportar diante
daquilo. Miguel o seguira e tentou segurá-lo pelo braço, mas foi em vão.
Debaixo do seu braço três diários cuja assinatura repousa no canto direito com
um nome simples e ao mesmo tempo poético. Um nome forte que talvez carregasse um
lado negro, um passado tristemente esquecido que agora retornara com toda força
para reivindicar o seu espaço, o seu direito de se pronunciar, um nome que
transportara uma história que fazia pela primeira vez Pietro esquecer a Escola,
Alice ou Dalila, que o fizera deixar tudo para trás sem nem ao menos falar com
o seu irmão, um nome, um simples nome. Uma assinatura de dor, uma cicatriz, que
agora voltava a sangrar: Otelo...
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