Quão bravo você
poderia ser diante do seu grande amor? Qual seria a medida de sua coragem? De
sua força? Do que você seria capaz? Abandonar o próprio filho? Largar tudo em
nome de uma aventura?
Todas
essas dúvidas explodiam na mente de Pietro. O que o pai dele teria feito? Seria
por isso que sua mãe o odiava tanto? Ele a abandonara? Algo não se encaixava
naquela história e ele sabia que a única pessoa capaz de responder isso seria
justamente aquela que ele mais temia: Dona Júlia. Fria, às vezes até um pouco
calculista, mas ainda assim extremamente sagaz. Se por acaso, Pietro apenas
levantasse o nome do pai, ela saberia que ele descobrira os diários e com
certeza se fecharia em sua fortaleza mais implacável, o silêncio.
Durante
todos os anos que Pietro convivera com ela jamais ouvira elogios sobre o pai,
na verdade ele sequer ouvira falar nele, apenas que tinha ido embora e só.
Quantos “dias dos pais” Pietro passou sozinho? Quantas vezes olhou para os seus
coleguinhas e percebera que havia algo de errado? O único a ir para casa
sozinho... O único a não ter o que desenhar com o título de família... A
infância não tinha sido fácil, a adolescência muito menos. A mãe sempre ausente
mergulhada em trabalho e o pai apenas uma nuvem, uma silenciosa memória da qual
ninguém ousava deslumbrar. Tudo era muito anuviado. Ninguém comentava, ninguém
explicava, e assim ele ia crescendo em meio a murmúrios e suspeitas. Tudo
sempre fora uma sombra e aquele diário poderia ser uma luz no fim do túnel de
mistérios ao qual Pietro acostumara a conviver.
Mesmo assim, não havia
muito tempo para isso, pois o trabalho se acumulava e com o vestibular estava
cada vez mais próximo, para Pietro, se iniciava a pior parte do ano, onde todas
as expectativas dos seus alunos se depositavam nele. Quais os assuntos cairiam?
Quais questões? Não bastava lecionar o ano inteiro, se a sua revisão não fosse
focada na prova, tudo que você construiu ao longo do ano iria por água abaixo.
Por um lado completamente compreensível, mas por outro seria completamente
martirizante.
Pietro mal sabia onde
posicionar os seus pensamentos e já se via aprisionado a uma série de rotineiras
obrigações. Se não bastasse tudo isso ainda havia Dalila que não parava de
ligar e correr atrás do garoto. Afinal de contas, as apostas dela se
direcionavam a ele, com uma boa revisão o curso estaria garantido e o dinheiro
também. No final de tudo, Pietro sabia que o sistema o engolira e que seria
muito difícil não ser digerido por ele.
...
Aracaju, 10 de
outubro de 2012 (às 06h15 da manhã).
Mais um dia corrido.
Era o que esperava por Pietro. Ainda meio desnorteado por causa dos
acontecimentos recentes, o jovem professor titubeava em suas memórias e angústias.
Ansioso por resolver os seus problemas e exorcizar os seus demônios internos,
Pietro se enclausurava ainda mais em si e, apesar de irônico, era quando ele se
mostrava mais talentoso.
As poesias e textos
literários abordados por ele em sala estavam carregados de sua tristeza e
tornava ainda mais verossímil o sofrimento dos românticos byronianos, as angústias
dos existencialistas e as divagações de muitas outras artes. A tristeza dele o
tornava suas aulas brilhantes e os alunos, ainda que presos a uma espécie de
escravidão intelectual partilhavam com ele, as suas inquietações. Sua mente efusiva
fazia daquele jovem professor uma explosão de ideias e reflexões. A vontade de
mudar, de conquistar era clara nos olhos dele e aquela vida totalmente contida,
reprimida por anos de más escolhas e temeridades reproduziam aulas extremamente
profundas. Pietro incorporava os seus personagens e era ali que ele por um
breve momento, ainda que curto, libertava a sua alma.
(Burburinhos de alunos)
-
Nossa que hoje ele está inspirado...
-
Finalmente né? Até pouco tempo atrás ele parecia um defunto ambulante!
-
Não fala assim dele, esses olhinhos tristes deixam ele tão fofinho, dá até
vontade de pegar para criar!
-
Tenho certeza que ele pega aluna!
-
Mais fácil ele ser gay! (Risos)
-
Silêncio pessoal, não quero saber de conversa na minha aula, bora! Mergulhem no
assunto!
-
Ixe! Será que ele percebeu?
- Duvido muito, ali é
muito voador!
- Que história é essa
que Pietro é gay?
- Sai daí pô! Isso é
coisa desses meninos invejosos!
- Invejosos nada! Mal
vejo em balada e quando o encontro ele está ou sozinho ou com um amigo! Atestado
de gay!
- Isso não quer dizer
nada!!!
- Ihhh tá defendendo
demais!
- Já pegou né?
Confessa!
- Nunca tive sorte!
- A irmã de uma amiga
minha disse que ele é bom...
- Como assim???
- Vocês vão ficar aí
fuçando a vida do professor ou vão deixar eu assistir aula?
- Ihhh parou gente,
Helena começou a dar chilique!
- Deixa essa idiota aí,
aposto que ela tem uma queda pelo professor! Mas vamos parar porque ele já
olhou para cá duas vezes... Já já ele estoura...
Helena apenas sorriu.
Um sorriso sarcástico, quase de desprezo. Não entendia como pessoas poderiam
ser tão fúteis e em certa medida tão cruéis. Aqueles comentários nos ouvidos
errados certamente prejudicariam o professor e numa cidade como Aracaju, não importa
quem realmente você é, mas sim aquilo que falam sobre você. Mesmo sendo de
fora, ela já havia aprendido as regras do jogo. Não se importava que falassem
dela, mas não admitia que cometessem injustiças com os outros, especialmente
Pietro. Aos olhos dela, o melhor professor da Escola. Dedicado, impetuoso e
principalmente sincero. Não fazia questão de esconder suas opiniões ou de
apenas concordar com os outros para agradar o público, Pietro era exatamente
aquilo que se apresentava, ainda que por trás de seu brilho, houvesse uma
tristeza contida. Helena percebera isso há muito tempo, no entanto, nunca se
sentira a vontade para conversar com ele. Até porque, Pietro jamais abriria
esse espaço para ela, provavelmente nem saberia qual era o seu nome. Então que
moral ela teria de tentar ajudá-lo? E ajudá-lo como? Ela, apenas uma estudante.
Ele, um brilhante professor. Bastava então, garantir ao seu modo, o respeito
dos outros em relação a ele. Não era uma simples questão de protecionismo, mas
sim de amizade platônica. Mas um dia, a coragem deveria brotar e com ela o silêncio
seria rompido.
- Bem galerinha, como o
meu tempo acabou, nos vemos na próxima aula ok? Não se esqueçam de fazer as
devidas atividades de casa. Até mais.
Os alunos mal escutam
Pietro e saem aos montes, descendo as escadas, empurrando uns aos outros, o que
importava era ir para casa, buscar o descanso e a nova balada. De certa forma,
Pietro ainda se sentia um garoto e assistia de camarote aquela cena, mesmo sob a
ótica de professor adulto, talvez ele lembrasse um tempo que fosse menos
infeliz, onde a angústia e preocupação repousasse apenas nos sermões de Dona Júlia.
Estático e pensativo,
Pietro mergulhava mais uma vez na sua melancolia, talvez o dia lhe trouxesse
respostas, ou simplesmente mais perguntas. Cansado e sozinho Pietro não
percebera que havia deixado seu precioso diário em cima da mesa, sua última
anotação estava à mostra em forma de bilhete, preso entre as páginas de seus escritos, fruto de seus devaneios madrugais
Hoje eu acordei com uma vontade danada de
conquistar o mundo
De fazer acontecer e conhecer coisas
novas
Descobrir
Sentir
Viver...
Mas então lembrei que precisava dar aula.
Desistir de todos os meus doces sonhos
Levantei
Fui trabalhar!
Aquele diário seria um
prato cheio para as fofocas estudantis, no entanto, uma mão delicada e
compreensiva o salvou...
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