O
final de semana havia sido uma tempestade emocional sem precedentes, aliás,
aqueles últimos dias pareciam ter sido anos. Desde o sábado a noite que eu não
falava com Miguel e também não estava muito preocupado em encontrá-lo. A
possibilidade de encontrar Alice acidentalmente
mais uma vez era extremamente desconfortante. Enfim, não podia perder muito
tempo pensando naquilo, afinal de contas, minha via crucis havia recomeçado e
lá estava eu mais uma vez como sempre as 7 da manhã.
Aquela
semana prometia acontecimentos marcantes, principalmente pelos rumores que
circulavam pela Escola a respeito do possível aumento salarial. Embora eu
duvidasse muito, e imaginasse que fosse apenas mais uma história de corredor, tinha expectativas, até porque a esperança
apesar de morrer é a última a completar a cena.
-
Jovem Pietro!
Abel...
Sempre Abel... Aquele ar de superioridade me incomodava e todas as vezes que
ele pronunciava o meu nome eu me sentia vigiado.
-
Oi Abel, como vai?
-
Melhor impossível... Está sabendo do aumento?
-
Não... Que aumento?
-
Nem te conto, a dona Eva publicou uma nota, na qual pretende acatar a decisão
do sindicato e nos dar o aumento padrão.
-
Quantas migalhas foram dessa vez? 3 ou 4,2%?
-
Não fale assim jovem... As coisas poderiam ser bem piores, esse aumento poderia
nem existir.
A
única coisa que o Abel não tinha se tocado ainda, é que as coisas já estavam bem
piores. Principalmente com esses aumentos amarrados que a diretora nos
concedia. Isso sem falar nas negociatas ilegais que existiam dentro da Escola.
O esquema era simples, a Escola não pretendia em nenhuma hipótese pagar
impostos a mais devido aos encargos trabalhistas. Por isso negociava com o
futuro contratado pagar uma parte (diga-se de passagem, a menor) na carteira e
a outra parte em cash ou via depósito. De qualquer maneira, o dinheiro total
recebido era o valor combinado e isso para os pobres diabos licenciados era
motivo para festa e comemoração. O que eles se esqueciam, é de como o futuro
pode ser cruel com os mais velhos, que por atenderem as exigências de uma
mulher sedenta por poder, acabavam negociando um futuro que sequer eles o
haviam conhecido. A pergunta que deve estar na cabeça agora é: e se o professor
não aceitar tal condição? Ele não é contratado. Simples, objetivo e rápido.
Dessa maneira, os mais jovens eram sempre o alvo desse tipo de contrato, vi
muitos caírem nessa armadilha, nessa sedução, eu mesmo havia sido um deles.
- Jovem Pietro! Eu preciso muito falar
com você.
-
Na verdade nós precisamos...
As
palavras Dalila invadiram o recinto, e eu próprio me espantei com a aproximação
dela.
-
Precisamos tratar de algo que pode envolver o seu interesse. E acho que temos
muitos interesses em comum...
-
Olha pessoal, hoje é segunda-feira ainda. É algo tão urgente que não pode
esperar o final de semana?
-
Não Pietro!
Responderam
ambos ao mesmo tempo com olhares fixos em mim. Dalila segurou o meu braço e
continuou
-
O que eu irei conversar com você hoje, Pietro, é algo que definitivamente
mudará sua vida.
-
Tudo bem, eu dou aula até as 9 da noite, se puderem, eu os encontrarei em algum
lugar bom pra nós três.
-
A gente te liga então. Vá para sala agora que seus alunos estão te esperando.
Dalila
possuía um jeito meio que autoritária, mas de certa maneira, eu sentia certa
simpatia por ela. Tinha sido minha professora no passado, quando ainda era
muito jovem e desde então criou certa afinidade comigo. Pouco sabia da sua história, apenas sabia que ela estava no
mesmo barco que eu. Jovem, talentosa, inocentemente ambiciosa e presa às
amarras da poderosa escola. Se fosse somente o Abel a pedir um encontro comigo,
obviamente eu inventaria uma desculpa, mas como era ela, valia a pena um pouco
de atenção.
As
horas se arrastaram durante o dia, e toda aquela pressão pela revisão completa
do conteúdo me incomodava, no fundo, eu sabia que ali não havia produção de
conhecimento algum, apenas a repetição de algumas dicas manjadas para um
vestibular ridículo que refletia a mediocridade do nosso sistema de ensino.
Contudo, eu não estava ali para julgar ou muito menos mudar o sistema, eu me
sentia como um fantoche num circo de lunáticos onde cada um possuía o seu
papel, o meu consistia em ser o suposto melhor professor de literatura.
Apesar
da curiosidade sobre a tal conversa com Dalila, eu não me apressei. Após o
encerramento do meu horário voltei para o apê, organizei algumas coisas e
fiquei estático diante da TV. Ela me
disse que ligaria, pensei, logo não irei demonstrar ansiedade. Às 22 horas
meu celular tocou. Não, não era ela. Apesar do salto que dei da cama logo
percebi que aquele era o toque destinado a Miguel e como eu já havia combinado
comigo mesmo eu não iria atender. O telefone tocou mais três vezes e de certa
maneira eu já imaginava o que ele queria conversar comigo, algo que
definitivamente eu desejava evitar.
Levantei
da cama, fiz outro lanche, andei pelo apê e nada dela ligar. Resolvi descer um
pouco, espairecer, tentar relaxar e nada. Às vezes tinha a impressão que o
celular estava tocando, mas no fundo não era nada mais do que fruto da minha
imaginação e ansiedade. Já passava da 1 da manhã e eu sabia que já deveria
estar dormindo, afinal de contas tinha uma terça lotada de afazeres e dezenas
de provas para corrigir. Resolvi ir deitar, mesmo assim não preguei o olho, às
5horas e 40 da matina eu recebo um sms: Desculpa
Pietro, não pude te ligar, outra hora marcamos aquela conversa. Como já disse,
vai mudar a sua vida.
Puta
que pariu, aquilo me deixou possesso. A sensação que eu tinha é que ela estava
jogando com a minha curiosidade, atraindo-me a sua teia como uma mosquinha que
ela em breve iria devorar. Mesmo assim, eu iria até o fim, só que dessa vez
iria ser do meu jeito. Respondi a sms de maneira seca e fria: Hoje a noite, às 10 na minha casa. Não leve
Abel. Obviamente eu guardava outros interesses por trás disso.
22
horas, 38 minutos e muitos segundos. A desgraçada iria me deixar esperando
outra vez. Aquilo já estava se tornando ridículo e eu obviamente mais ridículo
ainda. Resolvi dar um basta naquilo, tirei a roupa desliguei Home Theater e fui
me deitar. Parece até brincadeira, mas assim que fechei os olhos, o interfone
disparou e meio que já sabia que era ela que estava na porta.
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