Parte 1: O almoço
Já
era habitual, todos os dias, sobretudo os mais cansativos, Pietro depositava em
seus diários suas angústias e lamentos, para ele, taciturno do jeito que era,
consistia numa forma de desabafo, para ser mais exato, seria uma espécie de
libertação. Às vezes, mergulhado em seu silêncio, o jovem Pietro navegava em
seus pensamentos através de dúvidas e decepções, escrever para ele seria uma
maneira de experimentar o torpor e alívio de se distanciar de seus problemas,
um bálsamo para os seus momentos de aflição. Sempre buscando respostas, sempre
a procura de algo que o definisse e possibilitasse abandonar de uma vez por
todas aquele mundo.
Mas
dentre todos os problemas que Pietro enfrentava diariamente havia um que o
incomodava de forma peculiar, encontrar com ela era algo detestável e
agonizante, só de imaginar todas as ladainhas e lamúrias mescladas a um
profundo sentimento de rejeição proferidas, faziam com que Pietro se sentisse a
pior ou pelo menos a menor pessoa do mundo, mesmo assim, era algo inevitável.
Sendo dessa forma, que
pelo menos fosse rápido, esse era sempre o pensamento dele, mas como o de
costume, nunca o era e acabava se tornando um dia inteiro de pedidos e
reclamações. No entanto, ainda que a visita a ela o incomodasse profundamente,
a conversa com Dalila, pelo menos naquele momento ocupava todos os seus
pensamentos. Seria realmente possível usar o sistema contra ele próprio? Montar
um cursinho e fazer dele uma passagem rápida para sair daquele mundo, seria
realmente possível? Pietro sabia que somente ganhando muito dinheiro poderia
quitar suas dívidas e se dedicar aos estudos, diminuir a carga horária e
retirar toneladas de preocupações de suas costas, mas será que essa era a
maneira correta? De qualquer forma, Pietro sabia que para escapar do abismo
precisava se esgueirar ao seu precipício ainda mais. Cair era um risco, mas não
ousar uma fuga, mesmo que improvável, era ainda mais perigoso.
...
Próximo do horário de almoço
Eu
já havia lecionado praticamente toda a manhã , sabia que teria cerca de 40
minutos para almoçar e se possível tomar um banho rápido para voltar ao
trabalho. Ir para casa nem pensar. Por mais que fosse horrível, a única opção
viável seria ir para casa dela... O que para mim era um mal extremamente
necessário. Não suportava o fato de ter que ir pra lá, mas com a grana
extremamente contada e o tempo mais ainda... Bem, essa situação não chegava nem
a ser uma escolha. Todo o protocolo de ligar, avisar, pedir e é claro ouvir,
ouvir muitas indiretas e insinuações carregadas de rancor, ao mesmo tempo, o
simples fato de ter que ir lá alimentava nela uma espécie de prazer, às vezes
parecia que aquilo tornava viva a ideia de que eu ainda dependia dela, não é
por uma questão de afeto ou disposição para ajudar, mas sim por uma necessidade
patológica de mostrar poder, e aquilo definitivamente me incomodava, mas fazer
o que né? Ninguém me prometeu vida fácil, só acho que não precisava ser tão difícil
assim.
-
Boa tarde Senhora...
-
Você aqui...? Já sei! Veio almoçar não é mesmo?
-Acertou!
Já pode jogar na mega-sena viu?! Pretendo ser rápido, não irei incomodá-la...
- Trate de me respeitar
seu moleque! Vem até aqui e acha que pode me dar piadinhas??? Eu sei que você
só veio almoçar, é a única coisa que você faz! Trata minha casa como
hospedaria, some por dias, não liga para mais ninguém... Por acaso acha que eu
tenho obrigação de alimentar? Por que não usa o salário do seu empreguinho de
que tanto se orgulha?
Essa
relação de cobrança para comigo era sempre muito interessante. Em toda a minha
vida, ela nunca demonstrou o menor sinal de afeto por mim, eu nem consigo
lembrar alguma palavra de apoio ou de carinho. Sempre fui extremamente cobrado,
e ela não admitia falhas, devido a isso, a essa obsessão doentia por perfeição,
transformou minha vida numa série de provas e avaliações. Sempre com futuros
projetados onde todos opinavam e interferiam o único desautorizado a isso era
eu. Bem, podemos dizer que minha criação foi um pouco severa. Nunca falou sobre
meu pai, apenas que era um sonhador. Talvez ele tenha fugido por não
suportá-la, afinal de contas quem a suportaria? A mãe dela, aquela que deveria
ser minha avó, sempre me destratava na primeira oportunidade que tinha... Comparava-me
sempre a algum outro neto ou qualquer vizinho que possuísse a mesma idade que
eu. Nunca era vítima, sempre culpado e do alto dos meus 12 anos eu já acumulava
surras épicas que marcavam minha pele e toda a vizinhança, afinal de contas eu
era o menino pobre e mal criado, burro e desajeitado, voador e lerdo. Bom, os
elogios eram os mais variados possíveis.
E assim eu fui
crescendo, sem saber exatamente o que era afeto, ou palavras de carinho. Alguns
traumas não saem da minha memória, certa vez, em um “dia das mães” já meio
esquecido pelas mágoas e pelo tempo fui escolhido para fazer um poema para
ela... Eu tinha apenas 7 anos, repito 7anos, não sei exatamente de onde veio a
ideia, apenas sei que resolveram musicalizar o meu texto. Foi a única vez que
ela demonstrou algo por mim, jamais esquecerei aquele olhar, transparecia amor,
mas ao mesmo tempo muita tristeza, o que veio depois disso foi uma explosão de
fúria, ela rasgou o meu poema e com ele os meus sonhos, ali com aquele simples
gesto, eu soube pela primeira vez que havia algo de diferente em relação a mim,
não sei exatamente o que, mas desisti de entender a cabeça dela. Vida que segue.
-
E para quem eu deveria ligar? Para sua amada mãe que te expulsou de casa
grávida? Ou para a senhora que eu mal entrei e já está me cobrando... Imagina
se eu ainda morasse aqui. Olha, eu não tenho muito tempo... Nina está bem?
-
Se você quisesse saber mais sobre sua irmã você ligaria para ela...
-
Dona Júlia, eu só vim almoçar...
-
Eu sou sua mãe.
-
A senhora nunca conquistou esse título.
Fui
até o quarto na esperança inútil de dar um beijo na minha irmã, pela minha
felicidade ela não teve a mesma criação que eu tive, para ser exato, às vezes
me sentia excluído daquele mundo. Minha irmã sempre fora tratada como uma
princesa e de fato sempre mereceu isso, estudiosa, dedicada e muito meiga,
certa vez ouvi dizer que ela lembrava a Dona Júlia quando nova. Acho muito
difícil, não consigo imaginar sentimentos daquela mulher... Enfim, para a minha
tristeza não a encontrei e também não poderia esperar por ela, deixei um
bilhete, coisas que irmãos fazem um com outro. Almocei debaixo de algumas reclamações
e cobranças, para ser sincero mal conseguia distinguir o que ela dizia.
Eram sempre tantas
coisas, tantas críticas que eu simplesmente ignorava tudo ao meu redor, no
fundo algo me dizia que era através disso que ela tentava chamar minha atenção.
Provavelmente escolheu a forma errada, desprezo e estupidez nunca foram
ingredientes para o amor e respeito. Dona Júlia nunca aceitou meu envolvimento
com as Letras, o sonho dela para mim era a Medicina... Mal dá para descrever
como era massacrante as cobranças dela, a título de exemplo, eu acho que fui o
primeiro garoto do meu bairro a aprender a falar inglês e isso com 10 anos. E quando
iniciei o ginásio, hoje chamado de ensino fundamental, começou de fato a minha
via crucis, todo fim de mês era um terror, Dona Júlia não aceitava notas
inferiores a 9 e a cada fracasso uma humilhação. Basta fechar os olhos que eu
lembro das surras, dos gritos e berros, frases do tipo “Você me envergonha”,
“Nunca será nada”, “Não te sustentarei para sempre”, “VAGABUNDO” e isso eu
tinha 13 anos!!! Dá para acreditar? Quando entrei no ensino médio, eu me tornei
algo que os meus poucos amigos chamavam de Zumbi, não saía de casa, não me
envolvia com ninguém, era trancado em meus livros, diários e pensamentos.
Às vezes penso que
estive numa prisão e somente após muito sacrifício conseguir sair dela. A
decisão por outro curso foi o início da emancipação de Dona Júlia, que por não
aceitar minha escolha, já não pagava minha escola e assim eu fui para o ensino
público onde conheci meu grande amigo Miguel. É triste olhar para o passado e
enxergar que a única lembrança que eu tenho da minha mãe é o sofrimento, aliás,
mãe não, Dona Júlia.
Quando ela se envolveu
com outros homens, eu fui “convidado” a assistir os seus amores e desamores, é
difícil imaginar isso, contudo, não é de agora que acompanho os equívocos dela.
E sabe como é né? Para cada decepção amorosa, meu calvário aumentava ainda
mais. Não sei se foi sonho ou se é algo esquecido na minha memória, mas certa
vez acho ter a ouvido dizer que eu sou a prova do fracasso dela, a cruz que meu
pai teria deixado para puni-la, eu tinha apenas 4anos e já era culpado por
todos os problemas do mundo.
Quando minha irmã veio
ao mundo, a situação ficou menos pior, pois se antes era o alvo, passei a ser um
desconhecido na minha própria casa, completamente ignorado, a ponto de ser
servido pratos e alimentos diferenciados para cada filho. Nem preciso dizer que
eu não comia “caviar”... Hoje percebo que ainda não me libertei, mas no fundo
sinto que ela nunca me aceitou e por isso sair de casa pelos meios que tive foi
a melhor opção, provavelmente a única.
Fui
para o trabalho, ainda faltava muito para o dia acabar. Antes de sair...
-
Pietro! Nesse sábado quero você aqui em casa.
-
Não obrigado, não curto safári.
-
Estou precisando ajeitar algumas coisas para a mudança.
-
Como assim mudança?
-
Não lhe devo explicações.
-
E eu não sou seu empregado.
-
Quero que você desmonte o quarto de Nina, ela não pode fazer isso sozinha.
Esteja aqui às 7h.
E
assim, eu percebia o quanto aquele almoço iria me custar. Pois, de certa forma,
quem iria desmontar a casa seria eu, Dona Júlia citou o nome de Nina, porque
sabia que jamais negaria algo para minha irmã. Oportunista, possivelmente...
Mas com certeza, muito esperta. Ela sempre acabava me envolvendo em algo que eu
lutava para ficar distante, como disse, ela me queria por perto, afinal de
contas qual senhor não deseja ter os seus subordinados à sua disposição?
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